Desliguei a torneira do lavatório. Sr. Motard, o gato, já não bebe água da tigela. Não, tem de ser água corrente! Eu, fiel serva, levanto-me as vezes que forem precisas para cumprir o desejo de sua excelência.
Saí da casa de banho (virada para a cozinha) e dei de caras com ela. Repelente, grande, nojenta, asquerosa, horrível, terrível, horrorosa, medonha, feia, feia, feia, repugnante, engulhosa, pavorosa, ortóptera, feia, feia, feia! Por segundos ficámos frente a frente, não fosse o vidro do exaustor a separar-nos, morria ali de ataque cardíaco. Sr. Motard, o gato, voltou calmamente para a cama, ela escondeu-se no interior do exaustor.
Tenho uma genuína fobia por estas filhas da mãe, estas e outras do género, um medo incontornável e irracional que provoca reações incontroláveis. Não é trauma, não é “cenas à gaja”, é fobia.
Também não é falta de asseio, sou uma verdadeira fada do lar. Impecável, implacável! Mas vivo num rés do chão de uma casa antiga com canalizações antigas, é incontornável que, volta e meia, uma entre sem tocar à campainha.
Uso em toda a casa a mortífera bisnaga xpto, um verdadeiro revólver para as filhas da mãe. E ainda um spray xpto plus, amigo do ambiente, pessoas e animais, infalível para tudo o que é bicharada. Não brinco em serviço.
Tinha encomendado um sushi, era fim de semana, estava frio. Um filme, caminha quentinha, comida japonesa, o céu na terra, o Motard por companhia, damo-nos muito bem no silêncio. Chegou o sushi, luzes da cozinha e arredores acesas, a vassoura à entrada do quarto, não consegui comer sossegada. Antes de regressar ao quarto, pus de novo a bisnaga mortífera nas extremidades do exaustor. Nem sei como consegui fazê-lo, nem como consegui adormecer. A vizinha Ivone passou por cá e desdramatizou a coisa, disse que há muito a dita tinha ido para outras paragens, eu que não me preocupasse. Não me preocupasse? Em baixo, ao lado da placa vitrocerâmica estão os temperos e os talheres. E se fosse buscar um garfo e ela saísse por ali? E se tirasse um prato do armário superior e ela me saltasse para cima? É que as sacanas voam! Sabes que conseguem sobreviver a uma guerra nuclear??? Que exagero, disse a Ivone, e adiantou: amanhã passo por cá e abrimos o exaustor.
Fui buscar uma sopa de noodles feita na hora, comprada no chinês da avenida. Montei a sala de estar no exterior, comi no largo. Voltei a dormir com as luzes acesas, a vassoura à porta do quarto, os músculos do corpo tensos, tão tensos que qualquer posição para dormir me incomodava. A cozinha continuou na mesma, nunca mais lá entrei, ainda hoje não sei como consegui tirar o saco do lixo.
Reflecti. Não posso continuar assim. Não posso ter medo de viver na minha própria casa. As fobias não se resolvem, não desaparecem, mas se não enfrentamos o medo ele cresce desmesuradamente, faz-nos reféns, toma conta de nós. Há dois dias que não entro na minha cozinha. Não pode ser. É a minha casa, o meu exaustor, o meu medo. Enviei um sms à Ivone a agradecer e desmarcar a ajuda. Encomendei um caril de camarão do Aziz para o jantar. Respirei fundo, entrei na cozinha, voltei a usar a bisnaga e o spray, tendo consciência de que não se pode abusar do uso destas armas, mas em tempos de guerra não se limpam espingardas. Dei um tempo, lavei a loiça. Fiz uma pausa, fui mexer num texto, despachei emails. Regressei, tirei tudo da bancada, talheres, temperos, tachos, panelas e por aí fora. Esfreguei tudo com híper detergentes, sempre a espreitar pelo canto do olho. Parei, fui divagar um pouco pelo Facebook.
De pé numa cadeira, tive finalmente coragem para abrir o exaustor. Ufff, a sacana não andava por lá. Lavei-o, mudei o filtro. Num ímpeto, freneticamente, lavei a cozinha toda, arrastei o frigorífico, desmontei as prateleiras debaixo do lava-loiças, o coração sempre a bater ao ritmo de tecnho, não, de hardcore tecnho. Depois de um duche a ferver deitei-me exausta, mais tranquila, não totalmente. Sem cadáver não há crime.
Bem cedo, logo pela manhã, arrasei o resto da casa numa operação “total recall limpeza”. Exterminei duas traças e uma aranha pequena. (Não, não tive coragem de salvar a coitadinha da aranha que não faz mal a ninguém). Vesti-me para uma reunião, trabalhei o dia todo fora. O calendário lembrou-me que a minha diva ia cantar na Praça da Alegria, ao início da noite. Um serão perfeito! Assim que cheguei, a voz da diva levou-me para um cabaré de rua, animado, divertido, com boa música, perfeito. Dancei, bebi uma taça de champanhe, conversei, até flirtei. Deitei-me sem pensar em mais nada.
Na manhã seguinte, ainda de pijama, olhei para ela no meio do chão da cozinha. Inerte. Serenei. Varria-a para a pá do lixo com cabo de vassoura e saí de casa com o braço bem esticado. Plof! Sua puta, ias dando comigo em tonta!