Decidi comer, a meio da manhã, uma das laranjas baía, produto do meu reino dos Algarves. Apetecia-me. Tirei uma da cesta sobre a mesa. Ia a escrever «escolhi uma», mas era mentira, não escolhera nada. O meu acto fora, como se diz, instintivo, não pensado, peguei na primeira que me apareceu à mão. Senti-lhe a casca sadia, lustrosa, como hoje fazem questão de as pôr todas assim nos supermercados. Deu-me até a impressão de que a acariciei, num inconsciente pedido de desculpas por a ir descascar e comer.
Peguei numa das facas de bom corte. Gosto daquela mais maneirinha, de cabo de madeira roliço, que se manuseia às mil maravilhas e se aconchega bem para a operação de corte, sem risco de suceder qualquer maldade.

Fui rodando a laranja – que bem redonda ela era! – com a mão esquerda, enquanto a direita ia lavrando, a lembrar aquelas estradas às voltas em montanhas íngremes, voltas que nunca mais acabam e o condutor sempre atento, qualquer descuido é perigo que assoma. Assim eu, no cortar circular da laranja. Saiu a casca inteirinha, às rodelas, quase dava para se brincar com ela e até tive pena de a deixar cair (não a atirei, por respeito) no caixote com saco verde dos «restos de comida».
Ainda tirei com cuidado as partes brancas nas pontas. Sim, eu sei, a laranja não tem pontas, mas eu desconheço o nome técnico daquelas duas reentrâncias que os gomos deixam em cima e em baixo. Para os melões, a gente usa a palavra com que se designa o buraquinho do corpo humano; perito em melões, carece de aí os apertar ali ver se estão, ou não, maduros; para as laranjas, é capaz de ser o mesmo nome, não sei. Dizem que essas partes brancas não são boas para a saúde; por isso, dei-me ao trabalho de as tirar.
Pus os dois polegares no ‘buraco’ livre e, delicadamente, não fossem os gomos estragarem-se, parti a laranja em duas, porque, hoje, queria partilhá-la. E fiz bem – porque era docinha a valer.

Nada, porém, do que atrás escrevi tem a ver com a repentina pulsão que me levou a redigir estas linhas. Foi a mastigação – por mais insignificante e banal que pareça.
Pus o gomo na boca. O ambiente era sereno. Nem som de televisão nem de rádio nem arrulhar de pombos nem motor de carro a entrar para a praceta. Dei comigo a sentir nitidamente os dentes a triturarem os gomos. Sentia – ia a dizer ‘pela primeira vez’ e não era mentira – a inteligente manobra da língua a atirar o bolo ora para um lado ora para outro, numa ginástica de mui adequados movimentos de que, confesso, nunca realmente me apercebera a valer.
E dei comigo a louvar a Sabedoria que tal perfeição instilara no corpo humano. Aliás, logo que eu pegara na laranja e me dispusera a ir comê.la, senti (agora dou conta) as papilas gustativas a prepararem.se, as glândulas salivares a porem-se em campo. Maravilha!
Outro dia, ao caminhar – a rua calcetada tinha insidiosos buracos, os automóveis estacionados a trouxe-mouxe –, eu me apercebera, de facto, de que não carecia de raciocinar para escolher o melhor caminho em segurança: era o cérebro que, instintivamente (dizemos nós) dava as ordens.
No livro O Principezinho, de Saint-Exupéry, a Raposa propõe ao Principezinho que não deixem ao acaso a hora do encontro diário. Deviam marcar uma hora certa. Assim, explicou ela, meia hora antes eu já estou a gozar o prazer da tua companhia. Essa preparação psicológica gerada, pensamos nós, por automatismos. Um automatismo instilado na nossa essência.
Quando, com dias de antecedência, te pedem para «dizer umas palavrinhas» na cerimónia do dia 5, o teu cérebro começa logo a trabalhar, mesmo sem tu quereres. E essas «palavrinhas», ditas em três minutos, longamente amaduraram em ti nos dias anteriores. Quantos minutos? Quantos segundos? Não chegaste, até, a escrever tópicos num dos muitos papelinhos que tens espalhados pela casa, a fim de, no dia, te não esqueceres do pormenor significativo?…
Abençoada, pois, a minha laranja., algarvia, da baía, bem doce, que me confortou o estômago a meio da manhã. Ensinou-me a olhar mais para mim, a apreciar melhor a divina mecânica do meu ser. Bem hajam, gomos que insalivei e sem pensar degluti, quando o bolo alimentar estava pronto para seguir viagem!

Gosto muito desta viagem…ia dizer silenciosa, mas o silêncio está cheio de vozes que as palavras (sempre as palavras como diria Canetti) acabam por traduzir. Mas devo confessar que esta imagem final “vou-te comer”, também está divinal e um tudo nada perversa…
O teu texto, José d’Encarnação, faz-nos reflectir longamente neste processo de comer uma refeição, uma iguaria, que eu nos últimos tempos engolia quase sem critério.
Já me estou a imaginar, doravante, a ver uma peça de fruta que me apeteça e a dizer-lhe, pensando , “vou-te comer” e a pobre, antecipando os meus requintes de degustação, a encolher-se de medo.
Por reverência, em atenção a este texto, pensarei simplesmente, vou saborear-te. E se for uma laranja do Algarve, ainda acrescentarei: tenho esperança de ficar mais saudável com a tua vitamina C, cálcio, fósforo e potássio, mais fibras e flavonoides…
Tenho a certeza de estabelecermos uma relação mais cordial e favorável.
Um mimo de texto. Muito grata.
De: António Campar
24 de janeiro de 2025 23:18
Tudo pode dar um motivo motivacional, assim haja jeito, como é o caso… Abraço
De: Pires Laranjeira
25 de janeiro de 2025 01:47
Deves ter contos na gaveta ou publicaste e não conheço.
Esse texto fez-me lembrar um texto de Arsénio Mota, um conto sobre alguém a comer um fruto, também de modo sensual, não me lembro de qual, nem do livro que apresentei com esse texto, lá nos anos 80. Ele, jornalista e escritor, faleceu há dias com 90 e tal anos, um amigo que quis que só soubéssemos uma semana depois, notícia dada por uma sua sobrinha. Tem espólio no Museu do Neo-Realismo. Ah, acho que era uma pera!
Abraço.
De: Teresa Mascarenhas
25 de janeiro de 2025 18:30
Belo, belo texto, o da laranja!
Obrigada, Zé.
De: Teresa Meira
25 de janeiro de 2025 17:19
A D O R E I
De: Regina Anacleto
27 de janeiro de 2025 17:08
A laranja, além de saborosa, ainda fez funcionar o pensamento, ou seja, a inteligência.