O PSD na Madeira, o Astérix, o Frank Underwood e os ventos fortes irlandeses

Há coincidências curiosas… ando a reler a minha colecção inteira do Astérix com o meu filho de 5 anos, onde o pobre Júlio César luta frequentemente com os seus opositores políticos, como o general Cipião, entre muitos outros. Entretanto fiquei viciado nas manobras do casal Francis e Claire Underwood, que, na série House of Cards (que já tem uns anitos), lutam furiosamente para conquistar o poder da Casa Branca e, quando lá chegam, lutam com admirável frenesim para o manter.

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Estes dois episódios ficcionais fizeram-me pensar na visão de caranguejos dentro de um balde, onde os que estão quase a conseguir escapar vêm as suas esperanças goradas pelos que os puxam para baixo.

Estava eu absorto nestes pensamentos quando, há umas semanas, ouvi na rádio a transmissão em directo do parlamento da Madeira, onde uma moção de censura contra o presidente Miguel Gonçalves derrubou o governo, que agora terá de ir a eleições. Os caranguejos que o conseguiram puxar para o fundo lamacento esforçar-se-ão, agora, por trepar até ao topo, passando por cima de tudo e todos.

E foi aí que me apercebi de forma cristalina daquilo que, no fundo, já sabia(ía)mos, mas nunca tinha verbalizado: não é de estranhar que os níveis de confiança da população na classe política estejam em mínimos históricos, dentro e fora das nossas fronteiras; afinal de contas, esta tropa já nem sequer se dá ao trabalho de disfarçar que o seu verdadeiro objectivo, salvo raras e honradas excepções, é (1) chegar ao poleiro e (2) manter-se no poleiro.

No filme ‘Conclave’, candidato aos óscares ainda em exibição, é proferida uma frase que já ouvimos inúmeras vezes noutros filmes e nos livros que lhes dão origem: os melhores líderes são os que não o desejam ser.

Chamem-me ingénuo, mas tenho saudades do presidente Kennedy e, apesar de ainda não ser vivo na altura, gosto de acreditar que tinha as melhores intenções, antes de levar não sei quantos tiros de não sei quantas balas com percursos que desafiaram as leis da física.

Não tardou muito até o escândalo Watergate abalar as fundações da confiança do público americano na Casa Branca. Mas isso foi noutros tempos, quando ainda se esperava uma prestação digna por parte dos líderes políticos. Hoje em dia é sobejamente conhecido o perfil do novo inquilino, mas ninguém se parece importar com isso. O facto de este cavalheiro inaugurar o seu segundo mandato com as proverbiais palavras “We’re gonna drill, baby drill!” enquanto a mais devastadora tempestade registada no Atlântico Norte se aproximava da Irlanda, é um triste indicador dos tempos bizarros que vivemos.

Ou seja, habituámo-nos a olhar para os nossos dirigentes, e dos outros também, como caranguejos que fazem carreira do nobre acto de tentar chegar ao topo do balde. E de puxar para baixo quem lá chega. Isso deixou de nos incomodar. O facto de passarem uma fatia considerável do seu tempo, e do nosso, a exibir esses dotes de escalada, deixou de causar qualquer tipo de mácula. É o novo normal.

Quem sabe se, um dia, surge um líder verdadeiramente dignoª desse nome, aqui ou além-fronteiras, que nos surpreenda com obras que não levam décadas a ser decididas e outro tanto a ser implementadas, ou com ideias brilhantes ou pensamentos inspiradores? O meu medo é que, mesmo que tal aconteça, vamos estar tão atordoados com o status quo reinante que nem vamos dar por ele, ou por ela.

Talvez seja esse o mais triste facto de todos: é que já nem nos importamos com o facto de a política se ter tornado num reality show barato.

E enquanto assobiamos para o lado e continuamos a alimentar o Tik Tok, os ventos mais vigorosos que já fustigaram a Irlanda, as labaredas mais terríveis que jamais fustigaram Los Angeles, as chuvas mais intensas que jamais inundaram València, continuam a ser justificadas como “parte natural de um ciclo”.

Claro que sim.

Já imagino o cenário distópico em que um planeta desértico e empoeirado, onde cada vez crescem menos coisas e onde se deixa de acreditar que a Humanidade aterrou na Lua – conceito muitíssimo bem explorado no ‘Interstellar’, que acabou de celebrar 10 anos – e mesmo assim ecoarão as vozes que chamam nomes aos chatos dos ambientalistas, porque “tudo faz parte de um ciclo” e pois claro que as actividades humanas não tiveram influência nenhuma no caso.

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