O CARDO

Cresceu encostado à parede do meu jardim. Não tenho coragem de o cortar nem o varredor passa por ali. Há geralmente um carro estacionado que, de certo modo, o protege. Acompanho há meses o seu crescimento e, um destes dias, não resisti: fotografei-o! Afinal, até o requintado recorte das suas folhas, de nervuras brancas, encerra singular beleza.

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            Canta Aldina Duarte:

Dói-me ser a flor do cardo
Não ter a mão de ninguém;
Tenho a estranha natureza
De florir com a tristeza
E com ela me dar bem

Sim, Aldina, parece agressiva essa flor e, em meio de picos, pobre da mão que ousar aproximar-se. Não receio eu, porém, que me seja hostil o cardo encostado à parede do meu jardim. Primavera a chegar, ele radiosamente florirá amarelo ou roxo e haverá zângãos que lhe irão sugar o néctar, tenho a certeza. Por agora, é só verde raiado de branco, altivo, solitário, despercebido.

Os outros cardos

A mim, portanto, já se viu, despercebido não passou.

Contudo, nado fora eu na Serra da Estrela, ‘cardo’ teria para mim um significado bem especial. Não seria este meu cardo-mariano (silybum marianum), que, segundo se diz, é «indicado para o tratamento dos distúrbios digestivos que ocorrem nas hepatopatias e das lesões tóxicas do fígado, e como tratamento de suporte na doença inflamatória crônica do fígado e na cirrose hepática).

cardo silybum marianum

O ‘meu’ cardo seria, nesse caso, um outro, o que Lineu chamou de Cynara cardunculus, aquele cuja flor, macerada com sal e água num almofariz, funciona como coagulante na produção do queijo. E o que é curioso saber é que essa flor introduz no queijo ‘compostos fenólicos’, que, além de gozarem de um salutar poder antioxidante «podem servir de forma de autenticação do seu uso no fabrico de queijos DOP – Denominação de Origem Protegida, que obriguem ao uso desse coagulante.

cardo cynara cardunculus sem flor
a flor do cardo cynara cardunculus

Acontece, porém que sou arqueólogo e, nessa condição, cardo detém para mim um significado bem específico: é a palavra latina que identifica a rua principal da urbanização duma cidade romana traçada segundo o modelo convencional. Indicava, aproximadamente, o eixo norte-sul. O cardo cruzava na perpendicular com o decumano (decumanus, em latim) e a urbanização ideal teria nesse espaço central de cruzamento a grande praça central, o fórum. Aliás, da palavra latina cardo deriva justamente a palavra cardeal, donde vem a designação de ‘pontos cardeais’.

Sou, contudo, arqueólogo nado não na Beira Baixa do bom queijo, mas do Barrocal algarvio, de influências alentejanas bem vincadas na gastronomia mediterrânica. Exacto, essa, a alentejana, que ocupa agora lugar cimeiro nas gastronomias mundiais, pois se noticiou, a 9 de Janeiro último, que fora eleita «a nona melhor do mundo pela revista TasteAtlas, guia online de comida tradicional».

E recordo a frase «quem tem fome cardos come», que ouvia desde pequenino, que sempre entendi como «arremedeia-se qualquer coisa, do que houver, paciência!». Uma reacção semelhante à da Aldina Duarte: que lástima ter de picar-me!

Pois o que se passa pode ser bem diferente. O cardo que mata a fome não é o da parede do meu jardim, que só abastece abelhas e zângãos. É um cardo de folhas enormes, rentes ao chão, a espreguiçar-se: será, eventualmente, o que detém o nome científico de Scolymus hispanicus. Alentejano que se preza sabe aproveitar tudo o que a Natureza dá. Daí  termos a sopa de beldroegas, a açorda com hortelã da ribeira, o caldo de poejos… Tudo ervas bem saborosas e naturais.

cardo Scolymus hispanicus

Ora, o cardo é assim; pela Primavera, leva-se a enxada pró campo – um campo não cultivado, de vegetação espontânea – e corta-se o cardo, com cuidado, pela raiz. Convirá levar luvas, já se vê, que também se usarão em casa para ripar, ou seja, para libertar de limbos picantes a carnuda nervura central, que fica qual talo de couve, mas muito mais saborosa, como se verá. Uma sopinha de feijão encarnado com cardos – delícia! À boa maneira alentejana, com um raminho de hortelã por cima, a dar aquele gostinho meridional – tem que ser!

5 COMENTÁRIOS

  1. Boa tarde José d’Encarnação. Adorei este teu texto sobre os cardos vegetais, que os humanos também existem, mas picam de forma diferente…
    Andei para aqui a ver as muitas espécies deles e ia jurar que o teu, escondidinho (por enquanto) era um Cynara Cardunculus (e parece que sim, mal comecei a ler) desses que dão a flor que depois vai ajudar ao tratamento do queijo.
    Em Coimbra, onde nasci, o queijo era suave. Na Beira Baixa, a região da gastronomia agora enaltecida (herança dos moçárabes, muito mais importantes no seu silencioso isolamento em aparente terra de ninguém do que se sabia…) o queijo era picante e ao cardo se devia.
    Comi muito queijo por aquelas bandas e até na dosagem deste agente coagulante do leite, era precisa muita sabedoria.
    Sobre o Cardus maximus li no autocarro que nos levava de Israel à Jordânia, há muitos anos. Ao desdobrar um “mapa”, uma planta da cidade velha de Jerusalém, sabia que iria atravessa essa via, mas antes de lá chegar foi na cidade jordana de Gerash – Jerasa, a Pompeia do Oriente, que o fiz.
    Depois ainda havia de visitar o Mar Morto, a fortaleza de Masada, Belém e só depois a velha Jerusalém, fazendo questão de chegar ao cruzamento do Cardus maximus com o Decumanus…
    Quanto material sobre viagens, povoamento de territórios, até do que é hoje Portugal e gastronomia, para fazer outros tantos textos que só um arqueólogo poderia!
    Bem hajas por estes ensinamentos. Sopinha de cardos é que não…
    Beijinhos.

  2. Enganas-te, Helena: quando adregar saboreares uma sopinha de feijão vermelho com cardo, vais ver que lhe teces elogios.
    Fico feliz por o meu olhar para singelo cardo meu vizinho te haja proporcionado recordações boas dessas paragens orientais. Aproveito para te dizer que também agora por lá ando, com o Sr. Eça de Queiroz, na sua ‘Relíquia’.

  3. A propósito de uma simples planta à beira da parede, eis uma crónica científica muito interessante.
    Obrigada, Senhor Professor.
    Aurora Madaleno

  4. De: Maria Delfina Vasconcellos
    2 de fevereiro de 2025 19:58
    Adorei ler!!!

    De: Jorge de Oliveira
    2 de fevereiro de 2025 20:36
    Deambulações à volta dos cardos, lindo texto.
    Todos os dias do mariano tomo dois comprimidos e assim me vou aguentando até ser chamado para me sugarem a vesícula… esperemos que em breve deixe o cardo em paz!
    Abraço e continua a escrever sobre cardos e não só!

    De: Vanda Maria Amaro Jardim Fernandes
    2 de fevereiro de 2025 21:52
    Como sempre, estou deliciada com mais um texto admirável, inspirado numa simples planta até pouco apreciada, mas enaltecida pela sabedoria de um Professor, que sempre nos ensina algo de novo!
    Parabéns pelo escrito e retribuição de voto de semana serena e saudável, com meu forte abraço 🤗

    De: Elvira Bugalho
    2 de fevereiro de 2025 22:56
    Li o teu texto e gostei mesmo muito .Estar atenta à humildade é encontrar nela uma grande riqueza e sabedoria.
    O teu texto pareceu-me o jogo das bonecas russas…

    De: maria helena coelho
    3 de fevereiro de 2025 09:17
    O que tu sabes!…
    Agora até das três versões de cardos!…
    Li, e não me piquei.
    Antes te encontrei.

    De: Dora Barradas
    3 de fevereiro de 2025 09:47
    Obrigada por nos (es)pica(çar) a alma com leitura poética e educativa !!

    De: José Belchior
    3 de fevereiro de 2025 13:16
    Excecional artigo. Muito interessante.
    Mais aprendi!
    Agradecido,

    De: José Belchior
    3 de fevereiro de 2025 17:23
    Interessante também esta resposta, vinda de Henrik Ellert, dirigente do Coração do Algarve, a nossa antiga Pousada de São Brás, amigo dinamarquês que domina a nossa língua:
    Bonito, muito interessante, entendi pela primeira vez a importância do cardo há alguns anos atrás. Éramos a visitar uma queijaria perto de Trancoso onde produziram queijos de leite de cabra e ovelha – explicaram-nos que era mesmo o cardo que dava este sabor essencial!
    Recomendei à equipa de jardim na pousada incluir o cardo no jardim.

    De: Maria Jose Azevedo Santos
    Enviada: 4 de fevereiro de 2025 16:05
    Deliciei-me a ler a história encantadora do cardo que escolheu viver perto de ti !
    Que poesia à volta do cardo
    Obrigada por seres tão inspirador.

    De: Ana Leonor Pereira
    3 de fevereiro de 2025 18:39
    Muito lindo!

    De: Regina Anacleto
    3 de fevereiro de 2025 19:27
    Muito obrigada pelo “cardo”. Mas no meu tempo de jovem nas noites de S, João e de S. Pedro colhia-se um cardo florido, queimava-se a flor, introduzia-se o pé num recipiente com água e, no dia seguinte, se tivesse florido, era certa a correspondência do amor da nossa eleição.

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