À 1ª vista parece absurdo que espingardeiros europeus se tenham lembrado de estudar espadas muçulmanas forjadas na Síria e na Pérsia para descobrirem os segredos de forjar por camadas sobrepostas. O certo é que tal aconteceu, porque, obtendo esse segredo junto de forjadores muçulmanos, resolveram aplicá-lo em espingardas e pistolas europeias.
Foram apenas dois mestres espingardeiros que o fizeram: Georg Keiser, em Viena de Áustria, no século XVII, e o seu genro, Felix Meier, já no século XVIII. Há exemplares de obras destes espingardeiros em Portugal: um cano do século XVII, que pertence ao Museu Luso-Alemão, e um par de pistolas que integra a colecção de Vítor Galamba.
Um par de pistolas
Tem Vítor Galamba esse par de pistolas de pederneira na sua colecção. Gostei de as analisar, porque documentam o então raro fenómeno de possuir canos damasquinados.
O seu feitio demonstra o gosto da corte francesa, então muito em moda em todas as cortes europeias. As guarnições, de latão, acabadas a cinzel e com forte banho de ouro de 20 quilates, é prova de serem da corte de Viena de Áustria e sua sucursal de Karlsbad, na Boémia. Era nesta zona de caça do Império Alemão (hoje, República Checa), que se reuniam as principais figuras dos estados europeus para tratarem das suas alianças ou discordâncias. As maiores caçadas foram precisamente as realizadas nas redondezas de Karlsbad, razão pela qual muitos espingardeiros de Viena de Áustria abriram aí as suas sucursais.
– Mas pistolas para caça, amigo Rainer?
– Sim, além de servirem para a autodefesa do cavaleiro, durante as viagens, eram também usadas para a caça, a cavalo, de veados, ursos ou javalis.
– A gente acha que pistola antiga serve é para duelo, defesa de honra ultrajada!
– Para duelo, não, embora também pudessem servir para autodefesa, em caso de guerra. Este costume britânico de os nobres se guerrearem uns com os outros por razões de honra, ainda não se tinha inventado! As pistolas para duelo surgem apenas no último quartel do século XVIII. E as de Vítor Galamba datam de duas gerações antes!
Os dois célebres mestres armeiros europeus
Com base nos dados colhidos na maior enciclopédia que existe acerca de fabricantes de armas de fogo, desde o ano de 1400 até 1900 – Heer Der Neue Stöckel , (Schwäbisch Hall, 1978) – e também nos textos «Feuerwaffen», de John Hayward do Museu Victoria and Albert, de Londres; «Alte Feuerwaffen», do Dr. Arne Hoff, director do Tojhusmuseet de Copenhaga (Dinamarca); e «Alte Büchsenmeister», de Hans Schedelmann, do Kunsthistorisches Museum, de Viena de Áustria, é possível conhecer muito acerca destes mestres europeus dos canos damasquinados.
Desta sorte, sabemos que o citado Georg Keiser tanto escrevia o nome KEISER, como KAISER ou KAYSER. A razão para essa aparente divergência é curiosa e merece ser mencionada. Numa oficina de espingardeiros era raro, no século XVII ou XVIII, haver alguém que soubesse ler ou escrever. Tinham primorosos gravadores, que copiavam desenhos com motivos de caça, guerra ou plantas, escolhidos pelo mestre da oficina, em combinação com os desejos do futuro portador das armas. Nos apontamentos, deixados em papel para os gravadores, alguém escrevia os nomes, e assim surgiram diferentes interpretações dos nomes dos espingardeiros. Algo impensável nos dias de hoje, mas frequente naquela altura.
Georg Keiser, filho de Caspar Keiser, nasceu, em 1647, em Eger, na Boémia, que fez parte do Império Alemão, e faleceu em Viena de Áustria, uma das cidades capitais do Sacro Império Romano de Nação Germânica, em 1740. Apresentou-se em Viena de Áustria para ser aprendiz numa das melhores escolas de espingardeiros da Corte de Viena, em 1671. Em 1674 recebeu o diploma de espingardeiro profissional. Desde 1702 até 1716, trabalhou em conjunto com o seu genro, Felix Meier, e assinavam KEISER & MEIER. Em seguida, Meier ficou a trabalhar na sucursal em Karlsbad e Kaiser na capital, em Viena.
Um dado curioso acerca de Georg Keiser é o facto de, por diversas vezes, nas últimas obras, ter feito questão de mencionar a sua idade. Keiser usava punções em estilo alemão e em estilo espanhol, conforme o gosto ou pedido do futuro proprietário. Foi ele quem introduziu a arte europeia de forjar canos damasquinados.
Acerca de Felix Meier, sabemos que nasceu em Wangen, perto de Viena de Áustria, em 1672, onde faleceu, em 1739. Foi pai de Franz Meier, também espingardeiro, que em 1739 ficou com a loja em Karlsbad. Felix Meier foi aprendiz na espingardaria de Georg Keiser, em Viena, em 1699, ficando mestre em 1702. Casou com Anna Barbara, filha de Georg Keiser e trabalharam juntos desde 1702 até 1716. A grande maioria dos canos europeus damasquinados dessa época são da sua autoria. Por vezes puncionados, a pedido, com marcas pseudo-muçulmanas ou espanholas, mas a maioria sem marca alguma.
A corporação dos espingardeiros exigia o pagamento de uma quantia em dinheiro para fazer vistoria à arma. Era, por isso, costume as armas mostradas na loja estarem acompanhadas dos respectivo punções. As que eram feitas de encomenda habitualmente não possuíam nem assinatura nem punção: era um acordo entre o cliente e o mestre espingardeiro, fazia-se de conta que se tratava de encomenda de algum membro da família – e assim se poupava dinheiro e se evitava a burocracia.
Acrescente-se que todas estas peças tiveram uso em Portugal: umas europeias com os primeiros canos damasquinados por europeus, outras europeias mas com canos comprados ou conquistados aos turcos.
O que é importante é notar que se trata de peças muito raras dos séculos XVII a XVIII. Nos séculos XIX e XX os canos damasquinados inundaram os mercados de todo o mundo. Hoje, cerca de 50% das espingardas de caça modernas possuem canos damasquinados, sendo as restantes de produção normal, ou seja, fundidos e brocados, sem sobreposição de camadas de tipos de ferro diferentes. Até há “damasquinados falsos”, que se conseguem por meio da cobertura de um cano normal por uma camada de cera, aplicando-se-lhe, de seguida uma densa rede de ferro. Tirando esta, mergulham o cano em ácido, obtendo assim um aspecto parecido com o damasquinado verdadeiro. O verdadeiro é sempre obra de ferreiro-espingardeiro com imenso trabalho de forja, geralmente utilizando tipos de ferro diferentes. Os primeiros damasquinados falsos surgiram, em meados do século XIX, em Liège, sendo depois copiados por fundições de canos de diversos outros países.