Documentam as fotos a espingarda oferecida pela Rainha Dona Maria I de Portugal ao Sultão de Guzarate, no ano de 1795, como agradecimento pela ajuda nas Guerras dos Maratas, que, por três vezes, invadiram o Norte dos nossos territórios, no Indostão.
As manigâncias do inglês Beresford e a «Guerra Fantasma»
O Sultão arriscara muito, ao colocar-se ostensivamente, com o seu exército, ao nosso lado! Durante a ausência da Casa Real Portuguesa, retirada no Brasil, coube o governo de Portugal ao Marechal Beresford. Este, vindo da Índia Inglesa e da governação da Ilha da Madeira, achara por bem mandar forças anglo-indianas para ocupar Goa, Damão e Diu. Transformou estes territórios portugueses em portos de exportação do ópio, cultivado nos terrenos do Norte da India Inglesa.
Deu-se então a estranha “guerra fantasma“, da qual não se devia falar. A não ser uns magros protestos dos habitantes destes territórios lusos vindos dos moradores locais, ninguém mostrou disposição para pôr termo a esta situação, que se estava a agravar e, nitidamente, iríamos perder estes territórios, a não ser que alguém interviesse com força.
Foi o Sultão do Guzarate que mandou forças para Goa, Damão e Diu. Com esta cobertura, os locais pegaram em armas para defender as suas terras contra os exércitos anglo-indianos. Os britânicos cederam e não se falou mais no assunto.
A EAST INDIA COMPANY passou a servir-se de portos da Costa do Coromandel para fazer as suas exportações de ópio para a China, o que causou diversas Guerras do Ópio entre os Ingleses e a China. As consequências destas guerras ainda hoje sacodem o mundo.
É difícil decidir qual o peso que a oferta desta espingarda régia teve nestas questões, mas não deve ter sido pequeno! Observando a espingarda, notamos algo inédito: existe uma portinhola na chapa de couce para guardar algo. A porta abre-se por um mecanismo escondido. Uma vez aberta, mostra uma 2ª portinhola, que abre apenas com a respectiva chave, que se perdeu. A família que a tinha na sua posse (Casa Imperial Brasileira), nunca se preocupou com isso. Foi necessário fazer-se uma chave de parafuso à medida para desmontar a chapa de couce e descobriu-se o esconderijo para um livro miniatura, com a borda de cada folha em ouro!
A espingarda destinou-se ao Sultão do Guzarate, um maometano. Estes recebiam, na sua maioridade, uma frase escolhida do Alcorão, oferecida pelo seu líder religioso. Esta frase era escrita numa folha de ouro, prata ou estanho, enrolada e definitivamente fechada, dentro de um tubo, que o agraciado tinha de levar num colar à volta do pescoço durante toda a vida. Era proibido dizer a alguém qual tinha sido a frase do livro sagrado a ele dedicada. Como a Rainha de Portugal logicamente não sabia qual era a frase destinada a este monarca, resolveu-se mandar fazer um livro do Alcorão completo em miniatura!
Nas fotos, podem ver-se em pormenor as duas portinholas e a coronha “despida” com a chapa de couce desaparafusada. No meio da concavidade da coronha (em raiz de perdiz, uma das madeiras mais difíceis de descobrir), consegue ver-se o pequeno livrinho.
A espingarda
A espingarda é obra do MESTRE DO ARSENAL REAL DO EXÉRCITO DE LISBOA, JACINTO XAVIER e datada “ LISBOA 1795”. No guarda-mato mostra as ARMAS REAIS PORTUGUESAS. Na tampa da caçoleta está a indicação “JACINTO XAVIER”. Na platina também. O fecho é dos melhores alguma vez feitos. A mola real, toda retirada de um bloco de aço, possui uma grande roda que assenta num pequeno rodete no calcanhar do cão. O FRADETE assenta no joelho do pé do cão. A CAIXETA agarra na unha do pé do cão. Tudo numa perfeição máxima e embutido a ouro!
O cano é um espectáculo por si. Tudo em estado impecável. É de origem do palácio TOP-KAPI OTOMANO, de Constantinopla. Em todo o comprimento, gravado, cinzelado e embutido com corais vermelhos e pedras semipreciosas. No meio de tudo isso, possui a punção do mestre da oficina que o criou. Este tem a abreviatura do seu nome, em turco, encabeçado pelo NÓ CELTA. Precisamente o mesmo nó celta que surge nos desenhos da armadura usada por Dom Sebastião I de Portugal na batalha de Alcácer-Quibir (1578). Este nó não costuma aparecer em armas otomanas mas sim em portuguesas, italianas, alemãs e austríacas. Como nós tivemos grandes mestres destas origens a trabalharem nos nossos arsenais, é altamente provável que os soberanos otomanos também os tenham tido. Era costume militar, em guerra, prender espingardeiros e espadeiros para os obrigar a trabalhar.
Em suma: se esta espingarda nos pudesse contar o que viu, teríamos matéria para uma obra cinematográfica! E bem o merecia!