Vem já contada nos Nobiliários medievais a singular lenda de El-Rei Ramiro, Gaia, Zahara e Alboazar. Autores diversos recontaram a história de tão trágicos amores em cativantes textos, que, ao longo de séculos, fizeram o encanto dos eternos trovadores.
Almeida Garrett, cuja alma também era de enamorado, recolhe o que acabou por ser um trágico rimance da tradição popular, onde bebeu como ninguém e, ao longo dos quase quinhentos versos que compõem as quatro cantigas do romance Miragaia que recontam os passos dos quase míticos heróis de uma tragédia, compõe uma lição sobre o destino.
As actuais cidades de Viseu e Vila Nova de Gaia apropriaram-se da lenda e dela fizeram bandeira e concreto registo na iconografia dos seus brasões. Viseu e Gaia celebrando El-Rei Ramiro a fazer soar uma trompa de guerra no cimo de um castelo.
El-Rei Ramiro, Ramiro II, rei de Leão, que governara entre 931 e 951 uma parcela da Espanha cristã, por breve tempo constituído como “Rei da terra portucalense”, estabelece temporária capital em Viseu.
Ramiro, que platonicamente se enamorara da proclamada beleza de Zahara, irmã do rei mouro Alboazar, que, ao tempo, mantinha sua corte no Castelo de Gaia, fortaleza alcandorada, quase, sobre as águas do rio Douro, bem perto da foz, intenta o rapto da princesa, que parece não ter feito oposição e com ela faz vida, menosprezando a rainha. Gaia, esposa de Ramiro, ora desolada e traída, abandonada à sua desdita, assim se lamenta na quadra da Cantiga primeira:
– Diz que é formosa essa moura / Que te soube enfeitiçar. / Mas tu dizias-me dantes / Que eu era bela, sem par!…
Alboazar, ao regressar de mais uma campanha, tem notícia do agravo que o rei cristão lhe fizera e, numa atitude de vingança, escolhe alguns de entre os seus melhores guerreiros e desce ao território inimigo, onde acaba por raptar Gaia, essa bela sem par que, para desagravo, se deixa conduzir para o castelo de seu novo amo, ao qual passa a servir.
Ramiro, ferido em seu orgulho de rei, ao ter conhecimento do paradeiro da rainha, logo intenta maneira de a fazer retornar.
Escolheu, de entre os seus, alguns soldados de eleição e com eles parte rumo ao castelo de onde o rei mouro governava.
Disfarça-se de romeiro, ao avistar, com seus homens, o castelo, manda acoitar num bosque vizinho os soldados que levara e que, a um sinal seu que daria, o toque de uma trompa na torre alta do castelo, imaginando o ardil que ali o levaria, avançariam sobre o castelo para o libertarem a si e a Gaia, a antiga esposa preterida mas nunca esquecida.
Alboazar, ao voltar da caça ou da conquista, encontra o inimigo que Gaia reconhecera sob o traje de romeiro e, querendo vingar a afronta, lho entrega para castigo exemplar. Vendo-se condenado, Ramiro pede que, em vez da forca ou do machado do algoz ou talvez da lúgubre cadeia, o deixem subir à torre mais alta do castelo, onde sopraria a trompa que trazia a tiracolo, onde a sopraria até desfalecer. Favor real que lhe é concedido.
E logo ao primeiro soar da trompa, sinal que fora antes com seus soldados combinado, soltam-se da floresta os guerreiros de Ramiro, abrem de rompante as portas do castelo e surpreendem os soldados do rei mouro, distraídos. Depressa se apossam do castelo, derrotam a mourama, escapam com o seu rei e trazem Gaia, que agora vem prisioneira e que, amargurada, olhando da ribeira do Douro as chamas do castelo, lamenta seu trágico destino. Ramiro não perdoa e, irado, clama: – MIRA, GAIA! E apontou-lhe o castelo a esboroar-se. E a cabeça de Gaia cai na água sob golpe da impiedosa espada de Ramiro.
Entre as heroicas tradições de um imaginário de Viseu, destaca-se esta, que hoje se conta em seu brasão de cidade: – El-Rei Ramiro, falso romeiro, tocando sua trompa de caça e a mítica árvore – a imaginal floresta que escondeu os soldados do exército do Rei.
No brasão da cidade de Gaia, sobre uma das torres, El-Rei Ramiro sopra também sua trompa de caça e de vitória.