Surpreendem-nos, por vezes, versos lavrados na frieza do mármore duma campa. Magoados versos, versos plenos de ternura, versos eternos. A fazer-nos parar, pensativos, como diante daquela quadra do cemitério de Bragança: «Lindo botão de cravo floriu / Que tão cedo desfolhou / Tinhas tão bom coração /Que Deus pró céu te levou».
Não chega à dezena o número de inscrições romanas em verso achadas no território actualmente português. A que seus pais dedicaram à filha Nice, falecida aos 20 anos, constitui seguramente uma das mais ternas manifestações que nos chegou.
Confesso que me tocou fundo a sua mensagem, mormente quando li que os pais de Nice, Ínaco e Io de seus nomes, lhe haviam atribuído o voto: «Que longamente envelheças nesta vida de que me não foi permitido desfrutar».
Partira aos 20 anos; imensa fora a dor de seus pais, assim consubstanciada em longo poema; do lado de lá, ao lermos o epitáfio, vem esse doce voto de uma velhice longa e serena. Que mais poderá um sobrevivente desejar? E Nice no-lo deseja!
Trata-se de um bloco paralelepipédico, de mármore de Pardais, branco com manchas creme, cuja forma original se desconhece, por nos ter chegado após desbastado e maltratado para reutilização numa construção. Pode ter sido um altar para ser posto sobre a sepultura, aí pelo século II da nossa era.
Apareceu no rossio de Beja, no ano de 1794, certamente por ocasião de demolições aí levadas a efeito. O bispo Frei Manuel do Cenáculo teve conhecimento da descoberta e diligenciou no sentido de a pedra ser recolhida no palácio episcopal. Quando foi para Évora, fez questão de a levar de sorte que integra, desde 1868, o espólio do Museu Nacional Frei Manuel do Cenáculo, onde lhe foi dado o nº de inventário 1827.
Mede 75 cm de altura, 54 de largura e 36 de espessura.
Uma leitura difícil
De um modo geral, os textos poéticos não são nem de leitura nem de interpretação fácil. Neste caso, o mau estado da pedra tem levado a que muitos autores hajam feito propostas de interpretação, ainda que, amiúde, se trate de pormenores, não enjeitando o sentido geral do poema, redigido em versos líricos hendecassílabos, forma própria para composições de índole funerária, criada pelo poeta latino Marcial.
Não se dirá que se pôs ponto final na discussão; contudo, terá sido quase decisivo o contributo de María José Pena e deJoan Carbonell, investigadores da Universidade Autónoma de Barcelona, especialistas em poesia latina, que analisaram exaustivamente esta epígrafe. E a sua versão praticamente coincide com a interpretação que, com alguma liberdade, se sugerira em 1984, nas Inscrições Romanas do Conventus Pacensis (nº 270).
«Quem quer que tu sejas, viandante, que passares por mim, neste lugar sepultada, se de mim tiveres pena – depois de teres lido que faleci no 20º ano de vida – e se o meu repouso te sensibilizar, rogarei que, fatigado, tenhas mais doce descanso, mais tempo vivas e longamente envelheças nesta vida de que me não foi lícito desfrutar. Chorar, de nada te serve. Porque não aproveita os anos? Ínaco e Io mandaram fazer para mim. Vai, é preferível. Apressa-te, agora que já leste o que tinhas para ler. Vai. Nice viveu vinte anos».
Eloquente expressão da dor dos pais, na vontade de quererem manter a memória da sua Nice no seio dos vivos.
Enternecedor.
Os que já passámos para o lado de cá do meio da vida, sentimos bem o significado fundo desse voto:
«Amigo, que longamente envelheças, aproveitando os dias que a mim, Nice, só até aos 20 anos, me foi dado desfrutar!».

De: Maria de Magalhães Ramalho
30 de julho de 2024 10:08
Caro José d’Encarnação,
Muito obrigada, realmente é um texto muito bonito e verdadeiro.
Que coragem a dos pais… ou então, mais incrível e corajoso seria se tivesse sido a filha a pedir que escrevessem esse poema. Gosto de imaginar que assim foi.
Perante a dor e as desgraças só nos resta mesmo contribuir para melhorar o que nos rodeia e não desistir de procurar serenamente a felicidade.
Saudações desde Évora, perto da pedra que fala.
Maria