Afinal tudo isso deve estar nesta fatia de pão barrada com manteiga e mel, daquele que
ainda cristaliza. Robusto, sem o sofrimento da centrifugação.
O pão também não é de uma mistura qualquer. Trigo do bom, sovado, crescido sob o
efeito do fermento natural, ou massa-mãe. Cozido entre tijolos latejantes num forno de
lenha, para os lados de Alfarim.
É vendido na praça de Sesimbra. Comida a côdea mais estaladiça, só por gula, é cortado
em fatias que os intervalos do trabalho demandam, por gula igual.
A manteiga é dos Açores. Amarela, intensa, perfumada. Sai uma torrada da torradeira, e
só pede aquela frescura de uma noz de manteiga açoriana a verter umas lágrimas
salgadas.
Preciso de emagrecer, mas já lá vai o tempo das dietas. Que mal pode fazer uma fatia de
pão torrada, umas nozes de manteiga, uma colherzinha de mel que não é centrifugado?
Se a noite me pede um vício inocente, só me lembro do pecado da gula por um chá,
acompanhado de uma torrada com manteiga e mel. Dantes nem me atraía a espessura,
agora olho para o boião de louça e não resisto ao perfume de rosmaninho.
Os créditos de tanto enlevo ficam por conta dos sonhos projectados por milhares de
pessoas nas tarefas diárias. Como se vender pão, ou mel, enriquecessem alguém! Mas há
uns insectos laboriosos, as abelhas, que fazem um trabalho eficiente e servem um estudo
cientificamente fiável da despoluição do ambiente em que se movem. Não lhes cabem
menos créditos.
Diz a padeira que gosta de amassar o pão bem cedo, pela madrugada, de janela aberta
para o quintal, quando os pássaros acordam e todos os desejos parecem realizáveis.
O aroma das laranjeiras, e mais intenso o de lúcia-lima, pedem para aromatizar um chá,
enquanto a massa leveda. Depois o pequeno-almoço, também ele cuidado com requintes
de quem aprecia uma vida saudável, uma boa refeição, ou precisa de suporte de energias
para trabalho sem pausas.
O que comem os portugueses de manhã… ainda só pão com manteiga para acompanhar a
bebida quente? Um café e um pastel de nata, em promoção habitual? E as calorias
necessárias para aguentar o dia e o trabalho dos neurónios?
Volto ao quintal da padeira de tamancos de andar na terra. Deixa que o gato entre para o
calor do borralho, apanha cebolas novas e tomates, às vezes uns pés de cebolinho e de
salsa e vai à capoeira espreitar se as garnisés já têm ovos. Se estiverem atrasadas não há
drama, é um alimento que nunca deixa acabar na despensa.
Depois prepara a frigideira maior, põe os ingredientes em camadas sobre um fio de azeite
bom. E quando amolecidos, temperados com sal e pimenta, derrama sobre eles dois ou
três ovos até ficarem com a clara cozida e a gema ainda a escorrer.
Um café…um chá…um copo de leite quente? Às vezes até um sumo de laranja. Tudo
depende da época e da vontade daquele dia, que a importância do ritual da primeira
refeição, está na variedade e frescura dos alimentos.
“Devia ser nutricionista” – digo-lhe, enquanto me escolhe o pão e o vai armazenando num
saco enorme de papel – mas eu não tenho quintal”.
“Mas tem mel, ou pode procurar quem lho arranje. Uma fatia do meu pão só com uma
colher de mel, cura a maior parte das doenças que conheço. Penso nisso todos os dias,
enquanto a massa leveda até verter da gamela”.
Sabe de tudo. Di-lo com convicção.
E fala-me de varrer as cinzas e os gravetos para deixar o lastro do forno limpo, à espera
dos pães tendidos. Depois mostra-me a perfeição do lar de um dos que, ainda mornos, me
aquecem as mãos e o peito, onde encosto o saco tão recheado, que quase não vejo o
caminho.
Mas antecipo o cheiro do mel, lembro o voo das abelhas no dia em que uma me picou
junto a um cortiço já velho, acabando por morrer.
Mau sangue, o meu? Não…Leiam o livro magnífico de Maurice Maeterlinck, o belga que foi
Nobel de Literatura em 1911 e percebam o que importa.

Magnífica descrição, plena de poesia (como nós classificamos a prosa que nos enleva e faz sonhar…), a dar conta de recantos de uma aldeia e de pormenores de uma actividade, aldeia e actividade que nós bem gostaríamos de ver revigoradas, restabelecidas, preservadas. Inclusive para que as nossas crianças (e os pais!) voltassem a saborear, sem pressas, um pequeno almoço saudável.
É de ler e de reler!
Fantástica crónica, parece uma fotografia de um lugar conhecido perto das casas da nossa família na província. Fez-me sentir saudades de quando ia de Lisboa e comia aquilo a que hoje chamam brunch.
Mas já que há pão de fabrico artesanal e outros produtos de quintais a sul do Tejo, talvez um dia faça uma visita à praça de Sesimbra.
Está crónica faz-me lembrar o pão da tia Maria Emília. Eu era miúda, ela cozia o pão em forno de lenha, a farinha era de trigo eu ia buscá-la ao moleiro. O pão era para a semana inteira, muito gostoso, que saudades!!! Este texto levou-me ao passado.
A pessoa que assina esta excelente crónica preenche, necessariamente, dois importantes requisitos: sente e vive como poeta e já alguma vez ou, de preferência, em algum período da vida, viveu a vida de uma aldeia tradicional, como era há, pelo menos, 30 ou 40 anos. Pela minha parte, foi tudo muito fácil: foi só recuar no tempo e voltar à casa da minha avó paterna, onde eu passava o mais que pudesse do meu tempo livre. Só faltou o cheiro do pão a sair do forno! A manteiga, que eu saiba, não era dos Açores, mas não esqueço o seu paladar e textura delicada. Era comprada avulso na loja da aldeia, onde igualmente era aviado o petróleo, o sabão azul e o açúcar, tudo avulso.