A miséria não é uma invenção

Rodopiamos no salão da existência, já no limite das forças. As vozes de comando vão impondo o ritmo. De onde vêm? Ninguém vê quem as emite, mas são claras as directivas. Tanto como o desvio das maiores fatias do bolo que arrebanham para o círculo de amigos. As multidões digladiam-se pelas migalhas, no instinto da sobrevivência. Nem reclamam.

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Reconhecidas as desigualdades, adormecem sob o zumbido da indiferença, acordam ao som dos megafones que exigem que continuem a dançar, conforme as vozes que lideram. Não importa a troco de quanto… As despesas fixas têm de ser pagas…

O pior de tudo é esse estado de apatia. Os outros vão caindo ao lado e a multidão avança sem olhar para as vítimas, sem um abraço, ou uma palavra solidária. Os deserdados não são uma unidade homogénea, salve-se quem puder. E faria tanta diferença a união! Tornou-se natural não ajudar. Talvez mais fique do bolo, se alguns não resistirem.

Nem o exemplo dos que nada tinham, há meio século, e repartiam com o vizinho do lado a magra ceia, lhes serve de lição para hoje. “O poder tende a corromper”. Não vai apiedar-se dos que escolhem o silêncio, ou a resignação.

Os + ricos de Portugal. Fonte: Diário de Notícias

A indiferença favorece ainda a identidade das vozes de comando, que ninguém conhece. Adivinha-se-lhes a proximidade pelos que vestem bem, ou esgotam a lotação dos restaurantes e hotéis com mais estrelas. E depois compram as casas mais caras do mercado, os automóveis topo de gama.

Os campos de concentração ainda existem, com nova configuração. São as favelas das grandes metrópoles, donde os mais jovens têm esperança de sair, emigrando, e onde os mais velhos se resignam a esperar a morte na degradação constante.

A miséria não é uma invenção. Há corpos esquecidos em pedaços de cartão, no vão das portas da cidade, ao fundo das escadas de prédios degradados. Corpos de gente que já teve identidade, família, emprego e hoje se recusa a mostrar o rosto.

A morte ronda por todo o lado. O cheiro pútrido vindo de longe, contamina a passagem dos dias. Predadores de riquezas naturais, do subsolo ou das florestas, atacam populações indefesas, ou instituições credíveis. Têm uma “organização” sob o aparente caos.

Abalar estruturas que suportam os estados aspirantes à democracia, é promover o apoio aos que se agarram e perseguem o poder como feras esfaimadas.

As imagens dos teatros de guerra, pelo mundo, perturbam as consciências. Gerações itinerantes avançam e recuam ao sabor das marés “políticas”, do terrorismo organizado. Ou então olham o vazio em campos onde futuro é uma palavra desconhecida, transformados em lamaçais, quando chove. A cobiça empurra pessoas iguais a todas as outras para o patamar abaixo do limiar da pobreza. A impunidade faz crescer as ervas ruins.

Voltemos aqui, onde à luz do caos mundial parece que habitamos um paraíso. Bem sabemos o que encobre, mas a ilusão ainda alimenta a esperança. Toda a gente merece dignidade: cuidados de saúde, habitação, acesso ao ensino, reza a Constituição do estado de direito. Se nem todos têm essas benesses, quem ofende a Constituição?…

Pedro e Luísa viviam num T2 com três crianças, num bairro privilegiado. Diziam-se da classe média, com cultura superior. Um deles perdeu o emprego. Hoje habitam uma garagem, paredes meias com uma oficina de automóveis. São os novos pobres da democracia. Pintaram. Não podem remodelar. As divisões são cortinados do IKEA oferecidos…O resto é improvisar para dar um ar de normalidade à prole. Prioridades são os cuidados de saúde, alimentação saudável e educação formal apoiada em valores sólidos.

“Não queremos divulgação…cá nos vamos arranjando”. Até quando?

Amália teve que deixar a casa espaçosa que habitava com os dois filhos, depois de formalizado o divórcio. Curso superior também. O ex-marido casou de novo, viaja muito…A responsabilidade da educação dos adolescentes, recai toda sobre os ombros dela. Os privilégios antigos, acabaram. Hoje são quase pobres. Só a dignidade os impede do colapso.

Maria e Vasco perderam o emprego ao mesmo tempo. Arranjaram depois um negócio que faliu. Mantêm uma tenda minúscula num recanto semi-escondido. Primeiro foram os meses numa praia batida pelo vento, onde a maré ameaçava a “casa”. Agora num terreno quase abandonado, com conhecimento dos vizinhos. Quando chove são recolhidos num canto de uma das garagens.

“Aqui podemos ficar sem dar nas vistas… mas sabe como ele é, como sempre foi. Empreendedor, nunca resignado, resistente à aceitação de caridade alheia. Nem os filhos, lá longe, sabem o que estamos a passar… seria um constrangimento. Mas agora está doente… até pediu que lhe acabasse com o sofrimento, porque devia ser uma questão de meses… devo fazer o que me pede e acabar depois comigo?”

Silêncio. Afinal “os cavalos também se abatem”.

5 COMENTÁRIOS

  1. Fabuloso texto de verdades cruas que a maior parte das pessoas prefere ignorar.
    A miséria está aí diante dos olhos de todos, mas poucos lhe dão atenção. Os outros preferem mascará-la de situação pontual.
    Parabéns à autora e ao jornal por publicar.

  2. Uma crônica que é um grito de alerta para a situação actual que se vive em Portugal, e infelizmente, também, num mundo onde biliões de marionetas dançam ao ritmo dos interesses do capital. A cronista enquadra de forma magnífica estórias vividas por pessoas e famílias correntes com as quais certamente nos cruzamos na rua, com a realidade da sociedade actual. De parabéns este jornal que nos dá a conhecer tão avaliadas opiniões.

  3. Esta crónica é uma denúncia, de quem pode e manda, de quem sabe e encolhe os ombros, de todos nós… É a história da vida real de homens e mulheres que conhecemos em melhores tempos, em dias em que foram nossos colegas ou pais de amigos dos nossos filhos. É a crónica de um tempo, trágico, não de um dado casal ou família. Já que esse casal ou família poderíamos, poderemos, ser nós próprios.
    Obrigada Helena.

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