Espectáculo bilingue (português e espanhol), legendado em português, o que constitui uma excelente novidade, na medida em que permite acompanhar melhor as falas – que poucas são – dos actores, nomeadamente tendo em conta, que um (Ivan Solarich) se exprime em espanhol.
Interpretações geniais, seguras, aliciantes dos cinco actores, dois dos quais – Manuel Coelho («Estragon») e Ivan Solarich («Vladimir») – estão permanentemente em cena e é em torno disso que gira toda a acção. É que eles se encontraram, porventura numa encruzilhada da vida, e tinham o mesmo objectivo: esperar Godot. Não sabiam bem quem era esse Godot e porque se chamava assim. Alguém lhes tinha dito que o esperassem. E eles obedecem.
Só que a espera – como na fila para a morte, para uma cama no hospital, para o internamento no Lar de Idosos, para o Centro que distribui alimentos… – a espera angustia e pesa, eterniza-se e acabrunha e desespera, se não houver forma de, mesmo psicologicamente e em primeiro lugar, seu peso se conseguir diminuir. Dodo e Gigi lançam mão, portanto, a todos os ingredientes disponíveis, inventam outros, para que o tempo mais facilmente se lhes esvaia.
Ao fundo, numa pantalha, vamos lendo as poucas palavras que trocam, um em português, o outro em espanhol. E fazem silêncios. Muitos silêncios. Se os largos e fortes acordes iniciais e do fim são estridentes, num grito, os diálogos sucedem-se serenamente e atá contagiam os espectadores. Há, claro, aqueles momentos em que o senhor déspota, impante (Pozzo, incarnado por Tobias Monteiro), dá secas ordens ao pobre do autómato humano (Lucky, por Luiz Rizo). O oportuno contraste. E, a certa altura, aparece o menino (Tomás Andrade) e afirma: Godot está pra vir!
A cena está nua, como convém. É a beira duma estrada. Há uma árvore, que só no 2º acto mostra folhinhas, para marcar a sucessão dos dias e das noites, dos meses. Meditam os actores, meditará o público. Regressará para casa a sonhar também com um qualquer Godot – como Portugal longamente sonhou (e quanta vez ainda sonha!…) com o D. Sebastião salvador, em manhã de nevoeiro.
Levar-se-á para casa, além desse sonho, a excelente antologia de textos que a produção preparou. Há que lê-la com atenção, para melhor se entender, mormente o que se transcreve do programa desta peça levada à cena, em Agosto de 1993, pela Companhia do Teatral do Chiado, a dar conta do que se passara, em 1959, aquando da estreia da peça no Teatro da Trindade. Há o tocante testemunho «à espera», da autoria de Flávia Gusmão, directora, que conta o que se passou no estabelecimento prisional do Linhó. Há, escritos pelos próprios, os sentimentos que em cada um dos cinco autores despertou o papel que lhes coube interpretar. E não resisto a transcrever a parte final do depoimento de Manuel Coelho:
«Gastamos o tempo em banalidades, agarrados a esperanças infundadas, que acabam por limitar o ser humano, acorrentando-o a uma qualquer fé de que, um dia, algo acontecerá. E assim vivemos nessa expectativa, nessa espera.”
»Há um silêncio no mundo, perante os gritos de vários povos e em várias latitudes, e continuamos à espera, por absurdo, de que qualquer crença resolva a apatia a que estamos votados. Tenho para mim que a esperança pela esperança aniquila o humano».
Até somos capazes, a partir de certo momento, nos identificarmos com um ou outro dos homens que para ali estão à em entrecortada conversa. Quiçá, agora, a apatia nos cubra para, minutos depois, voltarmos à realidade e atentarmos melhor na frase que, por segundos, nos foi dado ler lá ao fundo. Indiferentes não ficaremos, porém, ao sibilar do chicote de Pozzo, aos gestos automáticos que Lucky (nada afortunado, apesar do nome), escravizado, é obrigado a fazer. Uma terrível e aniquilante supremacia. Lucky, uma vez, em ligar de grunhidos, ainda tenta papaguear um discurso eloquente. Eloquente será; desprovido, porém, de sentido.
Partiu-se da tradução, para português, feita por José Maria Vieira Mendes , e da tradução, para espanhol, de Ana Maria Moix. Direção, como se disse, de Flávia Gusmão; coube a Luiz Rizo o apoio dramatúrgico; encarregou-se Fernando Alvarez, como é hábito, da cenografia, figurinos e produção; a música foi do conhecido rapper cabo-verdiano Xullaj.
Intrigante, pois, bem intrigante, esta peça do dramaturgo irlandês Samuel Beckett (1906-1989), Prémio Nobel da Literatura em 1969, levada à cena pela primeira vez a 3 de janeiro de 1953, no Teatro da Babilónia, em Paris. Estreou-a agora o Teatro Experimental de Cascais, no Mirita Casimiro, a 13 de Novembro; é a sua 183ª produção e estará em cena até 15 de Dezembro, prevendo-se para o dia 7 a sessão com tradução em Língua Gestual e, para o dia 8, uma conversa com os espectadores.
Continuo à espera, como tantos de nós, sem conhecer a identidade de Godot (ele, ela, mais vezes tomada como Esperança).
Tive conhecimento desta escrita difícil, quase nonsense, logo a seguir ao Prémio Nobel de Literatura atribuído a Samuel Beckett. Li artigos sobre…muitos deles sem me ajudarem.
Um dia compreendi que havia três elementos identificadores, três linhas-mestras, dispostos ao gosto de cada um para compreender o texto que reli em 2001 na edição da Cotovia, com a tradução de José Maria Vieira Mendes.
A noite, a obscuridade do sentido da vida, a árvore, que se renova silenciosamente sem queixumes e sempre com a mesma pujança, o homem, à procura do que já tem e sem se dar conta do processo cíclico da sua renovação (criança será essa expressão) e da inevitável decadência: no 2º. acto Pozzo cego, Lucky mudo…
Arranjei para mim uma acomodação ao incómodo deste aparente absurdo, que é afinal uma colossal forma de retratar a Humanidade.
Muito grata, José d’Encarnação por dares conta desta adaptação, mais uma, do grandioso título de Samuel Beckett.
E só por ti voltaria a pegar em temas tão densos, nesta fase de restabelecimento.
Um beijinho.