QUANDO OS SALOIOS NÃO DAVAM CONTA DO RECADO

Cardantes e algarvias

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Terrenos de lavoura no Casal do Clérigo

João Canas, um dos grandes lavradores da região, era na década de 40 do século passado, o proprietário do Casal do Espargal, a nascente das Antas, em Oeiras. Devido a questões de lavoura e pressões urbanísticas que já se faziam sentir na zona, decidiu vender as propriedades que ali detinha e comprar um grande terreno no Casal do Clérigo, na freguesia de S. Domingos de Rana, Cascais.

O antigo Casal do Clérigo, já desaparecido

Conhecemos o Canas em 1982, quando fomos ter com ele a sua casa, junto à estrada de Trajouce para Manique, para solicitar autorização para o amigo João Luís Cardoso, escavar o sítio arqueológico do Cabecinho, do período Musteriense, que identificáramos em fins de 1975.

Encontrava-se sentado num banco de pedra a apanhar sol, junto à escada de acesso ao primeiro andar da habitação. Já não via nada e, para o ajudar a locomover-se, usava uma bengala. Do pouco que falámos percebi que estava em presença de um homem inteligente e conhecedor da zona de Cascais e Oeiras.

Em finais de 1991, localizei as ruínas do sítio arqueológico do Casal do Clérigo, uma villa romana já muito destruída, que tinha vestígios do Baixo-Império Romano até ao período islâmico e que escavámos, mais tarde, com José d’Encarnação, onde recolhemos, curiosamente, um tijolo estampado com espigas de trigo, demonstrando a antiguidade do cultivo daquele cereal na zona.

Tijolo com trigo estampado. período Romano

Será a partir dessa data que nos interessámos um pouco pelas vivências dos saloios do planalto oriental de Cascais.

Em conversas com o amigo António Clérigo, canteiro de profissão, e os filhos do João Canas, principalmente com o Dario Canas, fomos sabendo como era o trabalho das terras da família Canas, no cultivo do trigo.

As mondadeiras

Para trabalhar a terra eram necessários arados e charruas puxadas por animais, mais tarde substituídas por tratores. Trabalhos que necessitavam pouca mão-de-obra, sendo realizados por pessoas da casa ou lavradores dos arredores.

Quando o trigo principiava a crescer, a partir de fevereiro até maio, era necessário efetuar a monda, para remover as ervas daninhas. Tarefa especializada, feita por mulheres, que sabiam distinguir o trigo do joio e de outras ervas daninhas. Pelos anos 40 a 60, não existiam muitas mulheres saloias que realizassem esse trabalho, pelo que era necessário ir contratá-las às zonas do país onde existissem mondadeiras.

Falava-se, então, com um engajador para contratar um determinado número de mulheres no Algarve, onde elas existiam, por serem escassos os empregos na região. O engajador acompanhava as mondadeiras na sua deslocação de comboio até Carcavelos.

Ficavam aboletadas num barracão do lado sul do casal, junto aos terrenos agrícolas e da eira, onde havia uma cozinha e o dormitório. Mondar era cansativo, as mulheres sempre curvadas sobre a seara para arrancarem as ervas daninhas; daí que fossem preferidas mulheres jovens, com maior capacidade e resistência.

barracão que servia de dormitório às mondadeiras
mondadeiras no trabalho

Para além das mondadeiras algarvias que vinham para as searas de trigo de Cascais, era também comum haver ranchos de algarvias na zona de Alcácer do Sal, onde se dedicavam a mondar os arrozais.

Com a invenção das mondas químicas, deixou de haver necessidade de mondadeiras. Por conseguinte, a partir dessa data, os Canas optaram por modificar as instalações no sítio onde as mondadeiras viviam e criaram novas, designadamente, uma vacaria a fim de fomentar a produção de leite.

Os cardantes

Após as algarvias regressarem a casa, já com as searas maduras, entre junho e julho, era necessário proceder-se à ceifa e à debulha.

Mais uma vez, havia falta de mão-de-obra na região saloia para realizar esses trabalhos, pelo que os lavradores se socorriam de estremenhos da zona de Porto de Mós, os “cardantes”, assim chamados porque a sua principal ocupação era a cardação da lã dos rebanhos.

Traziam um saco às costas, com os seus parcos pertences. Na primeira noite, dormiam ao relento na eira. Após o início da ceifa, faziam uma cabana com os fardos de feno, onde se abrigavam à noite.

cardantes
cardantes

Para a debulha do cereal, o Canas tinha duas máquinas debulhadoras movidas por um motor a vapor, que, nos inícios dos anos 70, quando deixaram de ser usadas, foram vendidas para a Guiné.

Após a debulha, os “cardantes” procuravam trabalho nos pomares de Alcobaça durante mais dois meses. Finda mais essa tarefa, regressavam, finalmente, às suas terras, onde voltavam a trabalhar a cardar a lã ou arranjavam emprego nas pedreiras ou no pastoreio.

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