“AS ÁRVORES MORREM DE PÉ”

In memoriam de um carvalho do Parque da Cidade de Viseu

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imagem ilustrativa

“As árvores morrem de pé” (1949) é título de uma inesquecível peça da poética dramaturgia de Alexandro Rodriguez Alvarez (1903-1965) e evoco-a no presente texto para lembrar a recente morte do centenar carvalho do Parque da Cidade / Parque Aquilino Ribeiro, em Viseu.

Quem amasse aquela árvore já velhinha como quem ama um avô já velhinho também saberia que a sua hora de partida estava próxima, haveria apenas de esperar um pouco, esse jeito de despedida feito de um gesto de mão que se aperta e deslassa, de um brando fechar de olhos que ainda quer guardar traços de um rosto, quem amasse aquela árvore já velhinha ao ver que adormecia e sua fronde tombava sobre o manto do virginal chão de onde rompera gostaria de estender sobre aquele corpo ora em repouso a branca e suave mortalha de um lençol de linho.

Ei-lo, ali, sobre a verdura do Parque, o corpo inerme do carvalho como se em sege ainda o velássemos antes que torne à terra de onde se soltou.

Os ramos quebrados talvez se tenham tornado já cinza ou pó. Pouco importa. Se fosse há dois mil anos, um pouco mais, talvez os ramos ganhassem o jeito dos triunfais ramos de Quinta-Feira Santa e o velho tronco ganharia, porventura, o estatuto de árvore sagrada, quem sabe se não seria queimada, quem sabe se não foi assim que nasceram os lumes santos do Cepo ou Madeiro do Natal e os perfumados fogos de bela-luz e rosmaninho que iluminavam os Adros das aldeias na solsticial Noite de São João.

Ei-lo ali, o velhinho carvalho do Parque, “quaercus robur L.” de seu nome científico, “alvarinho” do dizer popular, descansando enfim, como descansou, há muito, o bom do monge que o mandou plantar na antiga Quinta de Massorim feita já Cerca dos Frades de São Francisco desde 1635, sabemos de vera história. Que este carvalho deve ter pertencido a essa mão-cheia das seiscentas árvores (carvalhos e castanheiros) que o bom do Frei Gregório de Jesus mandou plantar seis anos depois daquela data obediente a esse amor pela natureza que o seu patrono, São Francisco, lhe inspirara.

O Parque da Cidade ou de Aquilino Ribeiro, que de árvores era amador, continua povoado de sombras e de arvoredo autóctone, Jorge Paiva celebrando em seus textos a suave biodiversidade deste pulmão benfazejo e verde da cidade.

O velhinho carvalho que a morte levou, como se adormecesse, ainda ali repousa como se a cidade ternamente o velasse. Esperando, talvez, que o tomem nos braços, que o levantem do chão, guardando-lhe a dignidade. Talvez um escultor, ao jeito dos santeiros antigos, possa desenhar em seu corpo as marcas de uma vida cumprida, esse esforçado jeito de viver que alimentou, esse ansiado destino de morrer de pé, esse dom da sombra dia-a-dia generosamente derramada, essa facúndia dos frutos em que também se desdobrou. Talvez as sementes que guardaram possam germinar nos quatro cantos da terra de Viseu onde serão enterradas numa Primavera qualquer. Oxalá.

VISEU. Parque da Cidade/Parque Aquilino Ribeiro. Tronco caído do secular carvalho

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