Póvoa de Rio de Moinhos foi vila e sede de concelho até ao início do século XIX. Hoje, é freguesia do concelho de Castelo Branco; fica a norte desta cidade, de que dista apenas 18 quilómetros. Diz-se que, «na zona mais antiga da aldeia, ainda se encontram as tradicionais casas de balcão e vários vestígios da presença judaica e dos cristãos novos», que aí chegaram a habitar.
Ora, teve Manuel Leitão a gentileza de me enviar as fotos que mostram o lintel de modesta casa da aldeia, que ostenta, pintada a vermelho, uma inscrição que não nos deixa indiferentes e que diz assim::
Os SS equivalem ao algarismo 5; por conseguinte, fica-se a saber que, nesse ano de 1575, se comprava o pão a cruzado.
Claro que devem entrar aqui os historiadores da Economia, para nos explicarem duas coisas: primeiro, isso é o preço de um pão de quilo? Segundo: quanto vale um cruzado, em termos relativos? Ou seja, qual era, em média, o salário de um trabalhador nessa altura? De facto, só com esse dado na mão é que podermos aquilatar do verdadeiro significado dessa afirmação.
Mais! Porque é que foi feita esta inscrição? Seria aí uma padaria? E se se diz que, no ano de 1575, esse era o valor, quer dizer que já se estava à espera que, no ano seguinte, o preço seria diferente? Reinava, então, em Portugal, o jovem rei D. Sebastião (a batalha de Alcácer-Quibir travar-se-á três anos depois, em 1578) e, quanto se sabe, a situação económica portuguesa não seria das mais lisonjeiras. Compreende-se, por isso, que, gravado em pedra, se haja afixado o preço do pão – para que não houvesse dúvidas nem (o que era pior ainda!) alterações.
E quanto valeria um cruzado?
A essa pergunta junto eu uma outra: quanto valia um cruzado em 1950? Sim, porque, nessa altura, ainda a gente falava em cruzados, embora essa moeda já não existisse. Um cruzado eram quatro tostões. Mas com um cruzado eu comprava uma caixa de fósforos, eu comprava um bilhete de eléctrico em Lisboa! E tinha uma remessa de rebuçados!…
Acima do cruzado, havia a coroa, que eram os cinco tostões; por isso, os 25 tostões eram cinco coroas. Um escudo, mil réis; dez escudos, dez mil réis (réis era o plural de real); cem mil réis, cem escudos; mil escudos, um conto de réis! Isto é, nessa época de transição das moedas, o povo continuava a regular-se, no dia-a-dia, pelas designações antigas!
Por isso, como nós temos dificuldade em saber a que equivale, agora ,na realidade nossa quotidiana e não em teoria, uma nota de 20 escudos, porque era tanta coisa que se podia comprar com ela e, neste momento, oficialmente, ela equivale a miseráveis 10 cêntimos… – assim esse cruzado que o pão valia, possivelmente era capaz de ser bastante para o povo trabalhador.
Não admira, porém, que ainda exista essa inscrição; ou melhor, que em Póvoa de Rio de Moinhos se tenha sentido necessidade de a gravar. É que a aldeia integra uma grande ‘frente moageira’ e o Festival dos Moinhos – o V vai celebrar-se no próximo fim-de-semana – visa justamente dar a conhecer «as vivências e tradições daqueles que trabalhavam nos moinhos das duas freguesias [Rio de Moinhos e Caféde] unidas por dois cursos de água, o rio Ocreza e a Ribeirinha»; pretende-se «celebrar o testemunho do passado, do presente que se quer perpetuar no futuro».
Um outro testemunho
Sucede, todavia, que esse hábito – ao que parece, seria um hábito… – de gravar na pedra o preço de produtos essenciais tem outro testemunho na mesma região.
Joaquim Batista deu-me a conhecer a ficha duma placa de granito epigrafada, que está, desde 1910, no Museu de Francisco Tavares Proença Júnior, de Castelo Branco (Nº de inventário: 10.48), proveniente, mui provavelmente, da própria cidade, quiçá dalgum dos celeiros da Ordem de Cristo, e que diz assim:
Isto é: «Valia o alqueire de trigo 250 e o azeite a mil e acabou-se na era de 1567».
Também aqui a questão se põe: 250 quê? 250 cruzados – como na inscrição do pão? Pode muito bem ser que sim. E o alqueire eram, então, quantos quilos e quantos litros? 11 a 15 kg, 13 litros? Talvez.
Essa é, porém, discussão que deixamos para entretenha dos que se ocupam da História Económica. Para nós, o importante é o facto em si: a necessidade sentida de se gravar numa pedra – para que de futuro assim constasse! – o que nesse tempo ocorrera.
Quem diria, pois, que até nestas aparentes minudências a Epigrafia metia o bedelho?!… O facto é que meteu! E os historiadores que se acautelem, porque o que está gravado, escrito está. E de forma bem duradoira!
De: Jorge de Alarcão
10 de julho de 2024 09:13
Muito interessantes estas inscrições sobre o preço do pão e do azeite !!!
De: maria helena coelho
Enviada: 10 de julho de 2024 12:59
Que curiosas notas sobre o preço do pão e do azeite gravadas em pedra!…Dá mesmo que pensar – porquê?
De: Juan Manuel Abascal
11 de julho de 2024 07:54
¡Interesantísimo! En España no conozco ninguna inscripción de ese tipo. Hay textos referidos a la construcción de graneros y hórreos (seguramente para la fabricación de pan) en época romana y en el Renacimiento) pero no conozco estas indicaciones de precios.
Um texto muito interessante que me avivou memórias, com mil e uma questões provenientes desse aviso sobre (não aumentem) o preço do pão.
As equivalências é que são difíceis. Mas com Portugal em decadência política e económica já desde D. João III – tanto que nem tinha dote para dar à irmã, a infanta D. Maria, quando ela era pedida em casamento (quem o mandou deixar instalar-se a Inquisição em 1536 ?) – há um dado que me parece inequívoco: o pão tinha a importância fundamental que ainda hoje tem, que sempre teve, conforme a outra inscrição já do princípio do século XX.
Na pedra não havia outro produto que merecesse tanto destaque. E se considerarmos uma exortação ao povo, como o próprio autor sugere, “não paguem mais do que isso”, percebemos que sempre foi a base da alimentação das populações.
Depois o valor das moedas antigas. Ainda vi muitas nas mãos da minha avó. E lembro-me bem, apesar de pequenina, que dar-me menos do que 25 tostões era uma ofensa grave…
Não sei se guardo alguma, só como objecto de estimação. E para lembrar como dez réis de gente já tem birra por causa de um bem de que nem sabe o valor.
Grata pelo texto, José d’Encarnação. Beijinho.