VOLTAR A TIMOR

Arrumava o caos das estantes quando dava com a encadernação do original digitalizado. Estava perante um livro de grande beleza discursiva, sem obstáculos linguísticos, escrito por um cientista. Ainda me lembrava da forte impressão que me causara logo na primeira leitura. Não podia evitar relacioná-lo com a opressão de povos que ainda hoje lutam pela autodeterminação e independência.

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Escapando a uma comissão perigosa na Guiné nos últimos anos da Guerra Colonial, o meteorologista Manuel Costa Alves acabava por perceber a violência dessa mancha mesmo em Timor, em 19 meses de comissão civil no Serviço de Meteorologia daquela parcela do “império” português.

O livro, uma montagem alternada entre passado, presente e futuro ainda em construção convulsiva, está dividido em duas partes, a primeira com 19 capítulos, a segunda disposta ao longo de 14.

Ainda apresenta um posfácio esclarecedor, mas não podemos deixar de referir que antes da sua hábil estruturação, conta com um curto prefácio de José Ramos Horta e uma consistente apresentação de Adelino Gomes, ele também profundamente envolvido na causa timorense nos anos de luta pela independência, como em tantas outras causas justas.

Manuel Costa Alves teria ocasião de apresentar-nos muitos heróis da resistência Maubere, entre eles Xanana Gusmão, feito jovem herói na liderança pelo povo timorense (povos, ou grupos etno-linguísticos) até à vitória final. O livro termina com um posfácio deixando pelo caminho da leitura muita matéria para reflexão.

O autor acabaria por entregar-se à causa de tal modo, que Adelino Gomes sugere, na sua apresentação, que estamos perante um “poema de Amor” à Natureza sublime, à doçura e capacidade de resistência das gentes, apercebidas em leituras que o autor fizera antes de partir, para não ser surpreendido.

Mas era. Concluía que o seu país, o colonizador, nada sabia das paisagens naturais e humanas da parte oriental da ilha perdida no Pacífico, nem as particularidades climatéricas, nem as necessidades reais das populações. Pois se nem conhecia as carências dos lugares mais remotos do Minho ao Algarve!

Estamos a falar de um Portugal que tentava libertar-se das amarras do antigo regime e também da passividade do Portugal pós-Revolução perante os esforços de Timor para conseguir a autodeterminação. O primeiro perdera, em tempos remotos, a oportunidade de fazer de Timor Oriental “um paraíso” na Terra. Logo a seguir ao descobrimento e posse, interessava-lhe vender o sândalo, mais importante para os orientais do que para os europeus, e fornecer o café, de grande qualidade, aos exploradores da outra metade da ilha, os holandeses, para eles enriquecerem os seus lotes.

O Portugal de Abril debatia-se com os problemas próprios de quem se vê forçado a arrumar a casa, mas em matéria de apoios políticos e diplomáticos, pouco fazia. Era a sociedade civil que se movimentava, desdobrada em manifestações que atraíam instituições não governamentais do mundo inteiro e que pressionavam os poderes internacionais mais influentes para o esforço dos jovens timorenses, muito activos na década de oitenta do século XX.

Nem a sedução pela beleza natural e humana de Timor oriental chegaria para fazer o autor esquecer os vícios e a violência da marca colonial, também ali impressa com ferro em brasa. As suas manifestações de protesto valer-lhe-iam amargos de boca, como poderão perceber se vierem a conseguir este livro em algum alfarrabista. Diferenças abissais separavam colonizador e “colonizados”, começando pela barreira da língua. E o desespero fazia com que Manuell Costa Alves escrevesse que não pertencia àquele mundo.

Mas pertencia. Ficaria irremediavelmente ligado ao destino dos homens que conhecera, alguns torturados até à morte pela Indonésia de Suharto. Evocaria as memórias que guardara da sua experiência pessoal, fazendo a comparação inevitável com as marcas do passado, considerando o incalculável custo de vidas humanas da brutal invasão japonesa em 1942. E a violência repetia-se diante dos olhos do mundo, na construção de um futuro incerto a caminho da independência.

Como no passado, os timores continuavam abandonados pelo colonizador numa luta desigual. A Indonésia estava apoiada por países que, afinal, se relacionavam com Portugal. Teria sido possível negociar, não fossem os interesses conhecidos dos experts no petróleo do mar de Timor? Por tudo o que sabemos e pelo que ignoramos, lembra Manuel Costa Alves que na entrega do Nobel da Paz a Ramos Horta e Ximenes Belo em Oslo, o então presidente do Comité, Francis Sejersted, teria falado de um degradante cinismo da política internacional.

Lembremo-nos dos cinismos atuais e cada vez mais refinados, das manhosas ações bélicas para encobrir tantas fraquezas, para ambições tão desmedidas.

Afinal os timorenses tinham razão em quererem obter de jure, aquilo que sempre tinham sido de facto: independentes. Não passavam de uma peça marginal de um Império que colapsara. Tinham uma língua franca que os unia, os seus costumes que respeitavam, as entidades sagradas que nunca tinham deixado de venerar.

Se o massacre de 1991 no cemitério de Dili e as manifestações populares de total repúdio pelas ações dos mais fortes ajudaram, foram eles que fizeram tudo, que sofreram calados todas as agressões.

Eram uma realidade diferente, tanto em relação a Portugal como à Indonésia. Empreenderam sozinhos a luta, continuaram sozinhos entregues à sua sorte, em manifestações de resistência que fizeram do autor mais um adepto fervoroso da sua causa e um crítico acérrimo dos poderes dos regimes portugueses anterior e recente.

Impossível descrever aqui a riqueza humana e histórica desta narrativa que se aproxima do ensaio e da biografia, lidando com todos os discursos literários. É a revisitação de uma metáfora bíblica conhecida de todos; é possível David vencer Golias.

Lembro só mais um detalhe a comprovar empenhamentos inequívocos: todos os exemplares que sobraram deste livro, editado pela GRADIVA em Março de 1988, bem como os direitos de autor e o produto das vendas da editora, foram enviados para Timor, primeiro para a Resistência, depois para o Governo em exercício.

Espero que um dia o encontrem e percebam como os homens pouco mudam.

6 COMENTÁRIOS

  1. Os portugueses criaram uma imagem de Timor-Leste que não existe. Ou só existe numa espécie de imaginário coletivo que se tem perpetuado desde 1974. Pensar que os timorenses têm alguma coisa que os afaste da Indonésia é alimentar uma ilusão sem sentido. Não há nenhuma diferença entre os povos de Timor-Leste e os povos da metade indonésia da ilha ou de outras ilhas do arquipélago de Sonda. Diz-se que é a língua portuguesa que os diferencia. Mas eles não falam português. Há uma elite de velhos políticos educados pelo colonizador e pelos padres que fala português. O povo não fala. Em 2013, o Banco Mundial elaborou um estudo sobre a rede escolar timorense, onde se podia ler que das 8 mil escolas de ensino básico existentes (uma em cada aldeia), 30% dos professores só conseguia transmitir conhecimento se falassem em língua bahasa (a língua da Indonésia). Em nenhuma dessas escolas se usava o português. Nesse ano, havia cerca de 120 professores portugueses em Timor, 80 dos quais colocados na Escola Portuguesa em Dili (a escola das elites). Uma duzia estava ao serviço de ministérios vários, os restantes nas escolas de referência (duas ou três apenas, no país todo). Ou seja, uma gota de água no oceano. Em termos relativos, há cada vez menos timorenses a aprender português. A língua portuguesa é um estorvo na vida dos timorenses. Os documentos oficiais são escritos em português, ninguém os entende… Enfim, eles pagariam para nos verem dali para fora, se pudessem pagar. Ajudámos a fabricar a imagem de um herói nacional, em detrimento de muitos outros que se sacrificaram mais, que morreram… para acabar nisto, agora: https://duaslinhas.pt/2023/05/xanana-gusmao-instinto-predador/

  2. Grata pelo seu comentário, Carlos Narciso, sustentado pela experiência pessoal dos anos que passou em Timor.
    Acredito que a independência, formalmente assinada em 2002, tenha ajudado a alterar regras de convivência.
    Quanto ao link que deixa, e que demonstra um comportamento deplorável repetido por aí em pessoas agarradas ao poder, parece ter havido mudança da personalidade que nos habituámos a ver e a celebrar como herói.

    • Helena, a questão da língua portuguesa em Timor-Leste é meramente política. Depois de duas décadas de ocupação indonésia, havia que inventar argumentos para justificar o afastamento dos invasores. A Indonésia saiu de Timor por pressão dos EUA, da Austrália, do Vaticano, um conjunto de diferentes poderes circunstancialmente alinhados possibilitaram esse desfecho. A língua portuguesa não é usada, nunca foi de resto. No tempo colonial, havia seis ou sete escolas (de missionários católicos) onde se ensinava português, nenhuma escola do Estado. Ou seja, o povo timorense era iletrado. As escolas que hoje existem foram construídas pelos indonésios. Essa é a verdade. Eles tentaram unificar e, culturalmente, conseguiram. Politicamente falharam, graças à resiliência de um pequeno grupo de guerrilheiros que apenas existia, já nem combatia. De vez em quando tinham de fazer uma prova de vida, voltavam a esconder-se. Há casos (de verdadeiros heróis) que viveram anos em buracos. Vejam este vídeo: https://youtu.be/UgY-3OQGIps
      Depois da independência, quase nada mudou para a maioria das pessoas. Os jornalistas portugueses em Timor (um da Lusa, outro da RTP, em permanência) procuram sempre um padre ou um político velho para conseguirem ter interlocutores que falem português. Foi o que fiz aqui: https://youtu.be/26BFWKzrQjo
      A produção cultural timorense não inclui a língua portuguesa. Por exemplo, os poucos filmes timorenses são em língua tétum e legendados em inglês… https://youtu.be/hLS9190pgUg
      Os jornalistas portugueses, se quiserem entender o que se fala na rua, têm de aprender tétum. Foi o que eu fiz. A própria embaixada de Portugal sabe que não consegue fazer-se entender se não passar mensagens em tétum. Um dia pediram-me para fazer um vídeo a promover a feira do livro… sonorizado em tétum: https://youtu.be/hs4HlSM5i6c

  3. Bem haja por todas estas informações sobre a realidade timorense, Carlos. Um dia voltaremos a este este assunto por motivos especiais…Muito elucidativos os seus vídeos.

  4. Muito obrigada, Helena Ventura Pereira, pela belíssima recensão a este livro que desconhecia.
    A realidade timorense é-me tão desconhecida quanto atractiva. Tenho conhecimento, através de colegas e amigos que aí viveram e até desempenharam cargos importantes, da riqueza da cultura, tradições e património dos mauberes de Timor Leste e, assim, sou uma candidata ao aprofundar desse conhecimento.

    Não estou dentro dos insondáveis domínios da alta política internacional nem sequer da evolução política dentro de Timor Leste, os mesmos amigos me dizem não ser linearmente interpretável. Mas de uma coisa sei e tenho visto testemunhos: a amizade entre os nossos dois povos persiste, mau grado termos sido os colonizadores. Tenho pena que não seja o Português, então, o cimento dessa amizade. Mas outros vínculos subsistem, não tenho dúvidas. Em documentário recente vi bandeiras de Portugal pintadas um pouco por toda a parte em Dili, onde sei que continua a ouvir-se música portuguesa e a manter alguma da nossa gastronomia. E esses vínculos talvez constituam o mais importante a preservar, penso eu…

    • Há quase 1 ano que ando para acrescentar o meu comentário ao seu. É hoje. Sim, na sociedade timorense há reflexos de lusofonia. Alguns vocábulos de origem portuguesa na língua tétum, as fotografias de Cristiano Ronaldo coladas nos vidros das janelas das “microletes” (o transporte coletivo urbano), a bandeira nacional portuguesa. Creio que não me falta nenhum dos símbolos da “portugalidade em Timor”… Não há uma única escola de línguas que ensine português, mas há umas 50 que se dedicam a ensinar inglês. Enfim, continuo a dizer que se criou uma imagem muito romântica dos vínculos de Timor com Portugal. Digamos que será uma “relação” assimétrica: nós queremos gostar mais deles do que eles de nós. A maioria dos portugueses que vai para Timor-Leste desempenham papéis muito específicos: professores, assessores, formadores, na maioria dos casos. Vivem num circuito artificial dos “malae” (estrangeiros) e mal se cruzam com os timorenses nas ruas. Não frequentam os mesmos restaurantes, não utilizam os mesmos meios de transporte, uns não precisam dos outros, não se procuram, não falam a mesma língua. De um modo geral, é assim. Há exceções, mas são raras.

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