– Ai, já lhe viste o nariz? Maravilha! A perfeição sublime!
Não foram bem estas as palavras que René Goscinny e Albert Uderzo puseram na boca de Asterix, no livro «Asterix e Cleópatra», cuja edição original data de 1965. A frase autêntica é (traduzo do francês, p. 11):
– Ela tem ar de ter mau carácter, mas tem um nariz bonito.
Ao que Panoramix retorquiu, sublinhando:
– Um bem bonito nariz!
Mais adiante na narrativa (p. 46, em baixo à esquerda), quando Cleópatra diz ‘na’ a César, Asterix apressa-se a corrigir: «Isso é mesmo um belo na!».
O citado nariz é o da rainha Cleópatra e estas referências radicam na tradição de que, em Cleópatra, o facto de ser nariguda compunha às mil maravilhas a sua sedutora e bem exótica beleza. Atraiu, também por isso, as boas graças de Júlio César e de Marco António, não teve foi a sorte de conquistar Octaviano, o futuro imperador Augusto, e, ainda hoje na enseada de Áccio, na costa grega, jazem (diz-se) restos da armada de Marco António e Cleópatra, que Augusto aí definitivamente venceu, no ano 31 a. C.
Tivera Augusto sentido inclinação pela rainha e, na verdade, outros teriam sido os acontecimentos. Porventura, não lhe agradou nela o nariz grande. Daí a conhecida frase de Blaise Pascal, no nº 162 do seu livro «Pensamentos» (livros de bolso europa-américa, nº 180, 1978, tradução de Américo de Carvalho):
«O nariz de Cleópatra: fosse ele mais curto, e toda a face da Terra teria mudado».
Confessa Pascal – o seu livro (póstumo) data de 1699 – que, por vezes, um mero «não sei quê, tão pouca coisa que não a podemos conhecer, agita toda a Terra, os príncipes, os exércitos, o mundo inteiro». Não admira, pois, que, nessa linha de pensamento, o historiador americano Daniel Joseph Boorstin haja dado a um dos seus livros o título «O Nariz de Cleópatra– Ensaios sobre o inesperado» (Gradiva, 1995).
Descanse, porém, amigo leitor: não vou seguir por aí, pelos rumos da filosofia política; e, por outro lado, a Cleópatra de que vamos falar não é a célebre, apenas seus pais, mui provavelmente seduzidos pela história que não seria tão longínqua assim, lhe quiseram dar nome pomposo.
A Cleópatra que viveu em Beja
De acordo com a informação dada na página 136, sob o nº 36, do «grosso livro, encadernado, de papel almaço, branco, de 35 linhas» e 392 páginas, rotulado «Inventario dos objectos existentes/no Museu Archeologico da Camara/Municipal de Beja, em 24 de março/de 1898, organizado pelo bibliothecario e/conservador do referido Museu», Joaquim António Vargas, precioso inventário que pode consultar-se no arquivo do Museu Rainha Dona Leonor, foi encontrado o fragmento de uma pedra tumular romana, que a Direcção das Obras Públicas mandou depositar no Museu, onde lhe foi atribuído o nº de inventário B-66.
Teve Joaquim Vargas o cuidado de, a 15 de Dezembro de 1900, escrever a José Leite de Vasconcelos, então director do Museu Etnológico de Belém (Lisboa), a dar conta deste achado, que ocorrera «meses antes, demolindo-se parte da muralha de Beja para edificação do palácio das repartições públicas», como pode ler-se na p. 245 do nº VII (1902) d’O Arqueólogo Português, a revista oficial desse museu lisboeta. Esse palácio é o edifício do Governo Civil, inaugurado em 1940. Tendo estado em Beja no mês de Outubro de 1901, Leite de Vasconcelos estudou o monumento.
Trata-se do fragmento de uma cupa (o já nosso conhecido tipo de sepulcro em forma de pipa), de 29 x 43,5 cm, em que estava gravado o epitáfio. Mármore de Trigaches.
Registe-se, desde logo, com agrado o facto de se haver salvaguardado o letreiro, quer a iniciativa haja partido de quem procedeu à demolição quer dos construtores da própria muralha. Há, por vezes, uma espécie de superstição: o melhor é preservarmos estas letras, a gente não sabe o que elas dizem, pode ser uma maldição e mais vale prevenir que remediar…
Maldição não era! Antes pelo contrário. Redigido em latim e datável da 2ª metade do século II da nossa era, mostra o letreiro o carinho que Herénio Prisco teve para com a esposa, Júlia Cleópatra, falecida com apenas 33 anos de idade. Chama-lhe «marida pientíssima». O sentimento piedoso era o mais cultivado na Roma antiga, porque manifestava a atenção de alguém para com o seu semelhante.
As Cleópatras
Porque terá sido dado a esta Júlia – porventura liberta de uma das insignes família de Pax Iulia, a família Júlia – nome tão significativo? Quiçá os pais, não decerto por ela ter um nariz fora do comum, a tenham querido equiparar, em beleza ou na estatura, à da beldade da antiga rainha do Egipto, segundo a lenda que já então correria.
Compulsando os livros que trazem todas as inscrições romanas identificadas até ao momento no que foi o espaço do antigo Império Romano, ficamos a saber que outras Cleópatras houve. De quase centena e meia se encontra registo. Dir-se-á, no entanto, que, na província romana da Lusitânia, onde se integrava a maior parte do actual território português, é este o único testemunho, a ilustrar o superior nível cultural das gentes pacenses. E, no resto da Península Ibérica, apenas em Tarragona (Catalunha), se dá conta, num epitáfio igualmente de finais do século II, de uma Flávia Cleópatra ao seu marido «indulgentíssimo e incomparável». O uso de qualificativos entre cônjuges era frequente no seio familiar de libertos, dada a sua condição.
(artigo publicado primeiro em Diário do Alentejo, edição de 3 de Maio de 2024)