Devia falar da turba de patos bravos que se digladiam pelo melhor lugar ao sol…
Talvez do Ensino que põe crianças a brincarem com tecnologias digitais, antes de serem devidamente alfabetizadas.
Colocar em causa a Política Internacional, que sempre colou no topo das prioridades a disputa de território pela posição geoestratégica, pelos recursos energéticos não renováveis.
Desancar a podridão dos líderes que decidem a morte de jovens seres humanos nos teatros de guerra, para alcançarem os torpes objectivos.
No fundo aleijados mentais agachados nos tapetes dos salões palacianos de Estado, a julgarem que brincam com soldadinhos de chumbo.
Tanta ambição, incompetência e desprezo pelos outros seres humanos, revolve as entranhas do mais passivo, já causticado pelas injustiças internas, pela elevação dos medíocres ao estatuto de génios.
Só um “mandamento”, ou um preceito de vida, chegaria para evitar o descalabro em que a humanidade se afunda: não faças aos outros o que não desejas para ti. Mas não alcançam…
Quem o aprendeu muito cedo entre gente de bem, é inevitável ir ao encontro das raízes que fortalecem a sanidade mental.
Os valores, conduzidos pela sensibilidade e empatia, ajudam a estruturar a coluna vertebral de um ser humano. E não é preciso nascer em berço de oiro – como se todas as mães não parissem da mesma forma – para saber que o outro deseja para si, o mesmo que desejamos para nós.
No emaranhado de sentimentos contraditórios, prefiro deixar uma memória de infância.
Cresci em Santa Clara, perto do convento “novo”…
Infância calma, vizinhança pacata, gente de trabalho e missa domingueira. Aventura era descer a ladeira três vezes por semana, visitar a casa da avó Carolina, só para lhe dar um beijo e passar umas horas a ouvir a prima Laura contar-me histórias de fadas.
As fadas dela estavam todas transformadas em rãs muito grandes, como a de louça pousada no chão da sala. Quando a tentação me conduzia o indicador para lhe tocar, a prima Laura era persuasiva sem levantar a voz: “ nunca lhe toques, que ela pode morder-te o dedinho”. E assim me mantinha afastada da preciosiade que não queria ver partida.
Era de um verde tão bonito quanto o da cor dos seus olhos. Viera da fábrica de cerâmica onde o primo Machado vigiava a secção de embalagens, para que chegassem perfeitas ao destino. Longe…
Gostava tanto de ambos! Ele só falava com o sorriso tímido, olhando-a com veneração…Ela era uma explosão de alegria a disfarçar a meiguice. Tinha os olhos a transbordarem estrelas e o sorriso como um regato que, engrossando, havia de cantar pelo caminho. Era o sorriso da felicidade.
Ficava com ela três dias por semana, enquanto a minha mãe tentava aprender a profissão de enfermeira, que o regime proibira a quem quisesse casar. Mas a Rosa, prima do meu avô como a Laura, era enfermeira do médico mais conhecido de Coimbra e conversara com ele. Sim…durante três dias pode vir. E com uma bata de imaculada brancura, a minha mãe recebia os pacientes, apendia a dar injeccções e a fazer pensos, seguindo os conselhos do médico e da Rosa.
Nunca me lembro do almoço em casa da prima Laura, só do sorriso, das estrelas nos olhos verdes e do lanche…
Fazia-me um leite com café de “carapuço”, dizia eu, e aquecia vianas trazidas da Nacional por um homem ainda novo. Comidas com manteiga a peso e compota de ameixa do quintal, eram a melhor refeição do mundo. Depois íamos de mão dada até ao Portugal dos Pequenitos pelo passeio da direita, para eu brincar o resto da tarde.
“Sempre caminhar pela direita…sempre dar esmola com a mão direita”.
Nessa coisa de direita e esquerda a prima Laura e a minha avó Carolina não se entendiam. A última perguntava-lhe sempre se a esquerda era aleijada, se a esmola com essa mão valia menos.
Nada tirava o sorriso à prima Laura, que dizia o que sentia sem segundas intenções, só levada pelo Catecismo. Ninguém abalava a convicção da minha avó Carolina, que no dar a mão a toda a gente, da esquerda ou da direita, na fortuna e na desgraça, se encontrava a solução de bem viver.
E foi com ajuda de ambas que “o rapaz” que trazia as vianas conseguiu emprego…
Um dia assaltava a casa da prima Laura pela janela do quintal. Denunciado por uma vizinha do lado oposto, acabava por ser preso. Quando saía ninguém lhe queria dar trabalho…era perigoso.
A prima Laura e o Machado perdoavam. Se ele tinha crianças pequenas e necessidades…A minha avó conhecia pessoas na padaria mais famosa da cidade. E foi assim que o estabelecimento ganhou um funcionário cumpridor e eu comia as melhores vianas do mundo que ele trazia quando deixava o trabalho.
Ainda hoje lhes sinto o sabor do afecto.

Ainda bem que Helena Ventura Pereira optou por esta memória de infância em vez das outras hipóteses de crónicas que se lhe colocavam.
É um texto de grande beleza. Vemos a pequenina Helena pela mão da prima Laura “com estrelas nos olhos”, ou da sua avó Carolina. Partilhamos do seu lanche de doce de ameixa e ternura, vamos com ela brincar ao Portugal dos Pequenitos e perdoamos também ao empregado da padaria.
Partilha de valores de bem, muita ternura, beleza imensa, tais são os condimentos deste texto, tão bonito.
Se todos no mundo sevdedicassem ao que realmente é importante o mundo seria bem mais radioso.
Uma maravilhosa crónica cheia de amor!
Parabéns 👏
As crónicas de Maria Helena Ventura cheiram a alecrim e café com leite… De alguma forma, fazem-me sempre revisitar a minha infância.
Também considero que a Humanidade atravessa um perigoso momento e, infelizmente, a crise de bons líderes não se cura com crónicas nem comentários nos média. Ainda se não tivessem inventado a bomba atómica…