ESTADOS SEM SOBERANIA

DO ARTIGO ANTERIOR: "As autoridades induziram o medo ao exagerar o risco de mortalidade da infeção por Covid, levando as pessoas a reagirem por pânico, uma técnica que Naomi Klein designou de “doutrina de choque”. A “orientação” emitida pela OMS não foi sujeita a discussão pública nem a análise de custo-benefício, mas assumiu força de lei. A experiência sociológica correu tão bem que está em preparação a institucionalização formal do modelo."

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A saúde pública é altamente dependente de uma economia robusta, mas o pacote de medidas apoiado pela OMS para combater a Covid prejudicou a saúde pública, nomeadamente nos programas de imunização infantil de outras doenças, na saúde mental, segurança alimentar, mas também a economia, a redução da pobreza e o bem-estar educacional e social dos povos.

O UNICEF publicou o relatório “O estado das crianças no mundo 2023” no mês passado com a conclusão alarmante de que, nos últimos três anos, as interrupções induzidas pelos confinamentos na saúde resultaram em um total de 67 milhões a menos de imunizações infantis. Isso significa que “em apenas três anos, o mundo perdeu mais de uma década de progresso”.

Além disso foram feitos graves ataques aos direitos humanos, liberdades civis, autonomia individual e integridade corporal. Ao promover essas políticas, a OMS violou, sem fornecer qualquer justificativa além do exemplo da China, a orientação do seu próprio relatório em setembro de 2019, que resumia um século de experiência e ciência mundiais. Violou a sua própria definição de saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não meramente a ausência de doença ou enfermidade”. As campanhas de vacinação ignoraram tanto os sinais de segurança acumulados sobre a escala das reações adversas, como a eficácia cada vez menor após doses sucessivas.

O TRATADO PANDÉMICO E O NOVO ESTATUTO DA OMS

Os esforços euro-americanos para alterar os regulamentos internacionais de saúde juridicamente vinculativos e adotar um novo Tratado Pandémico sobre “prevenção, preparação e resposta pandémica” vão conferir poderes extraordinários à OMS. Atuando por meio do diretor-geral e dos seis diretores (para África, Américas, Europa, Mediterrâneo Oriental, Sudeste Asiático e Pacífico Ocidental), a instituição passará a poder declarar emergências de saúde pública de interesse internacional/regional e instruir os governos a implementar as suas recomendações. Os inspetores da OMS passarão a ter o direito de entrar nos países sem consentimento e verificar o cumprimento das suas diretrizes.

Mas embora estas “reformas” surjam sobre a capa da OMS, que as tutela, respondem sobretudo aos interesses da Big Pharma e dos grandes doadores da instituição, conforme expus no artigo “Os Patrões da OMS”. Medidas altamente políticas passarão assim a ser definidas por burocratas e técnicos de empresas capitalistas, passando quase completamente por cima dos governos eleitos e do devido debate democrático.

Ao contrário do novo Tratado Pandémico proposto, que deve ser examinado pelo Parlamento antes de ser ratificado pelo Governo, o Regulamento Sanitário Internacional (RSI) de 2005 já é um instrumento de direito internacional juridicamente vinculativo para 196 países. Como tal, quaisquer emendas adotadas não exigirão escrutínio ou votação do Parlamento. Todas as emendas atualmente propostas (307 no rascunho de trabalho) serão simplesmente adotadas na 77ª reunião da Assembleia Mundial de Saúde (WHA) em maio de 2024 se a maioria dos representantes dos países votar “sim”. 

COMO FICAM OS DIREITOS HUMANOS E A DEMOCRACIA?

A pressa para alterar os regulamentos internacionais de saúde existentes encontrou resistência significativa dos países em desenvolvimento, China e Rússia, na 75ª WHA, o corpo diretivo da OMS de 196 membros, em maio do ano passado. No entanto, esta questão vai ser discutida novamente. Um novo tratado exigiria a aprovação de dois terços dos estados membros da WHA (ou seja, 131 países) e estaria sujeito ao processo de ratificação nacional. Mas os regulamentos internacionais de saúde podem ser alterados por apenas 50% dos estados membros (98 países).

É extraordinário como não existiu praticamente nenhum debate público sobre as ramificações deste tipo de invasões de longo alcance na autonomia nacional, soberania do Estado e direitos humanos. Para dar apenas um exemplo, as emendas ao RSI propõem que a atual referência ao “pleno respeito pela dignidade, direitos humanos e liberdades fundamentais das pessoas”, no Artigo 3, seja substituída por “equidade, coerência, inclusão”. Isto vai alterar simplesmente o vocabulário padrão do movimento internacional de direitos humanos, conforme incorporado na Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Uma das grandes bandeiras da OMS é a defesa de uma “saúde global”. Mas o que é exatamente a saúde global?

Se a “saúde” em si mesma implica uma relação entre a vida e a morte, um conceito tão abstrato como “saúde global” pode englobar literalmente tudo o que toca a vida humana, desde questões como a mudança climática, violência armada ou mesmo o racismo. A OMS pode passar a ter atribuições em questões completamente fora da sua esfera atual e que estiveram na base da sua constituição.

A título de exemplo, a 2 de maio, o jornal The Guardian informou que a próxima cúpula climática da ONU (instituição onde a OMS se insere), em novembro no Dubai, pela primeira vez discutirá questões de saúde em profundidade.

Pandemias são eventos raros. A OMS listou apenas quatro nos 120 anos anteriores ao Covid-19: a gripe espanhola de 1918–19, a gripe asiática de 1957–58, a gripe de Hong Kong de 1968–69 e a gripe suína de 2009–10. Pandemias impõem uma baixa carga de doença em comparação com as doenças infecciosas e crónicas endémicas. Doenças cardíacas, cancros, derrames, doenças pulmonares, gripe e pneumonia são as doenças que mais matam no mundo. Além disso, como é bem conhecido e ao contrário das pandemias anteriores, cerca de três quartos das 6,9 milhões de mortes por Covid ocorreram em pessoas com comorbidades iguais ou acima da expectativa média de vida.

A Florida e a Suécia resistiram ao pensamento de grupo de confinamento e se saíram muito melhor no equilíbrio de benefícios versus danos. É por isso que a exigência de que cada país dedique um mínimo de 5% de seu orçamento de saúde à preparação para uma pandemia (artigo 19.1c do rascunho do novo tratado) não faz muito sentido.

UMA ESPÉCIE DE “GOVERNO SOMBRA” MUNDIAL

A mudança terminológica no RSI de uma “pandemia” para uma “emergência de saúde pública de interesse internacional” tornará mais fácil para a OMS assumir poderes extraordinários para crises de saúde que não sejam pandemias. No extremo, a nova estrutura regulatória prejudicará o direito dos estados soberanos de traçar os seus próprios caminhos independentes, assim como os confinamentos mudaram a responsabilidade e a agência dos indivíduos para o clero da saúde pública.

Não por acaso, também irá:

1- Consolidar os ganhos de quem lucrou com a Covid-19, concentrando a riqueza privada, aumentando as dívidas nacionais e desacelerando a redução da pobreza;

2- Expandir a burocracia internacional da saúde no âmbito da OMS;

3- Mudar o centro de gravidade de doenças endémicas comuns para surtos pandémicos relativamente raros;

4- Criar um complexo bio farmacêutico global autoperpetuado.

O diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, diz que uma prioridade urgente é “fortalecer a OMS como autoridade líder e diretora em saúde global”, pois: “Somos um mundo, temos uma saúde, somos uma OMS”. A crise da Covid “expôs sérias lacunas na arquitectura global de segurança da saúde”, o novo tratado seria “um acordo geracional” e “um divisor de águas” para a segurança da saúde global.

Ao mudar o foco da autoridade política de saúde (novo Artigo 13A.1 do RSI alterado), a tomada de decisões e recursos do Estado serão desviados para um corpo de tecnocratas internacionais, criando e capacitando um organismo internacional semelhante ao Estado e, assim, diluir as democracias nacionais. Surpreendentemente, a OMS será capaz de comandar os governos a direcionar recursos (bens e fundos) para si mesma e para outros governos (artigo 13.5, 13A.3–5 alterado do RSI);

Estamos a assistir à ascensão de uma burocracia internacional cujo propósito definidor, existência, poderes e orçamentos dependerá de surtos de pandemias. Quanto mais, melhor.

(1ªparte deste artigo neste link)

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