A SAÚDE NÃO ESTÁ À VENDA

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Uma das minhas avós morreu de uma hemorragia, na sequência de um parto domiciliar, a poucos quilómetros do hospital mais próximo. Nunca percebemos muito bem porquê, até que há poucos meses uma tia-avó, regressada à família depois de um longo e complicado período de afastamento, nos disse algo que, para a nossa sociedade, deixou de ser óbvio: a irmã casara e fora viver para outra aldeia com o marido, numa época em que ninguém tinha carro. Qualquer viagem, mesmo entre aldeias relativamente próximas, implicava horas perdidas de um dia dedicado aos afazeres agrícolas e de gestão da sobrevivência familiar. Desde o casamento e a mudança de localidade, a minha avó só pontualmente voltara a ver a mãe, uma mulher que tivera 12 filhos. Mais do que a hemorragia que lhe ditou a morte, a minha avó morreu – percebemos nós então – porque estava sozinha e isolada.

Tinha 25 anos. O marido era um homem pacato e passivo, educado numa geração fortemente marcada pelo patriarcado, e não tinha consciência das reais necessidades de uma gravidez, parto e pós-parto, porque eram “coisas de mulheres”. Eram, afinal, duas crianças a tentarem agir como adultos, numa época em que faltava tudo, inclusive um carro para levar a mulher de urgência para um hospital relativamente próximo.

Mas para quem sobreviveu, ficou uma história contada e recontada sem contexto, que, entretanto, passou um 25 de abril e um extraordinário avanço social e tecnológico ao nível da saúde materno-infantil e da saúde pública. Longe da consciência sobre o que era a sociedade rural de 1958, passaram-nos todas as racionalizações pela cabeça sobre a morte da minha avó: morreu de um parto complicado sem apoio hospitalar; morreu duma infeção; morreu derivado de uma hipertensão; morreu por falta de cuidados primários de saúde: foi o bebé que a matou, etc. Só não nos ocorreu que os nossos avós estivessem tão sós como de facto estavam.

O MUNDO VISTO DE CIMA

Os economistas Abhijit Banerjee e Esther Duflo, ambos Prémios Nobel e autores do livro “A Economia dos Pobres”, defendem que, frequentemente, ideias e políticas que funcionam nos países industrializados – ou aparentam fazer todo o sentido de um ponto de vista lógico e racional – sucumbem à lógica de mercado nos países mais pobres. Já Hans Rosling, epidemiologista sueco, conta no seu livro “Como aprendi a compreender o Mundo”, a forma como encontrou muito mais manifestações de empatia e solidariedade à morte do seu filho recém-nascido em Moçambique do que na sua terra natal. Por seu lado, o documentário da Netflix “Inside Bill’s brain: decoding Bill Gates”, reflete como a Fundação Bill e Melinda Gates viu goradas as suas tentativas de introduzir sanitas públicas num determinado país africano, simplesmente porque as mulheres locais tinham receio de ser violadas.

O mundo visto de cima, de quem nasce privilegiado (mesmo que de tal não tenha consciência), funciona de maneira muito diferente daquele que o vê a partir de baixo, ou seja, do fundo da cadeia alimentar social. Se a “fome não tem moral”, conforme refletia Stig Dagerman nas reportagens produzidas sobre os escombros da Alemanha nazi destruída, quem nasce privilegiado tende a ser muito mais moralista e até adepto de algum fanatismo comportamental que aquele que passou necessidades na vida.

Edward Snowden, analista de sistemas dissidente norte-americano, refere na sua autobiografia que os metadados e os algoritmos que os interrelacionam permitem ao observador saber tudo, menos o que determinada pessoa está efetivamente a pensar. Se eu escrever na Google “sintomas de Covid-19”, saberão que eu estou preocupado com a doença, eventualmente que estarei com alguns sintomas, mas nunca saberão se a tenho ou não, de facto, ou se as minhas buscas não passam de um entretém de um curioso. 

Se a Saúde pode ser entendida como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença ou de enfermidade”, não é menos verdade que temos de olhar para contextos, períodos históricos, dinâmicas de sociedade para compreendermos as simples opções que cada cidadão toma ao longo da vida. As ações de uma pessoa, que deixam o seu rasto em metadados, podem dizer muito sobre ela, mas a informação de nada vale se não se compreender a fundo o indivíduo e o contexto em que ele se insere. Acabamos à caça de fantasmas e a prever desastres que podem nunca vir a ocorrer, como quando crianças achamos que por vestirmos o fato do Super-Homem somos capazes de voar ou por termos um skate seremos automaticamente capazes de fazer acrobacias loucas nas rampas mais íngremes.

É por isto que o conceito “One Health”, ou “Saúde global”, é uma perigosa perversão das noções de bem comum e de lógica democrática.

O NEGÓCIO DA SAÚDE

Ao contrário do que se diz, muitos dos erros da pandemia não foram decisões honestas. Foram adoptadas políticas em desacordo com as evidências científicas, fingindo, por exemplo, que a imunidade após a recuperação do COVID não existia e exagerando a capacidade de a vacina interromper a infeção e a transmissão do vírus. Apesar de muitos terem sido vacinados, a SARS CoV-2 espalhou-se e as pessoas morreram de qualquer maneira, com tremendos danos colaterais – tanto económicos quanto em termos de saúde pública – decorrentes das políticas favorecidas pelas instituições de saúde pública.

As autoridades induziram o medo ao exagerar o risco de mortalidade da infeção por Covid, levando as pessoas a reagirem por pânico, uma técnica que Naomi Klein designou de “doutrina de choque”. A “orientação” emitida pela OMS não foi sujeita a discussão pública nem a análise de custo-benefício, mas assumiu força de lei. A experiência sociológica correu tão bem que está em preparação a institucionalização formal do modelo.

A revisão da OMS do seu Regulamento Sanitário Internacional (RSI) e o novo tratado pandémico pressionam os estados membros a aumentar o poder das autoridades centralizadas de saúde pública durante emergências de saúde. As “Lições da Guerra Covid”, lançadas recentemente pelo Covid Crisis Group, desculpam os pecados da saúde pública, culpando as suas falhas por financiamento insuficiente para prioridades de saúde pública e poder inadequado.

Os seres humanos não são máquinas. A saúde racionalizada ao estilo empresa multinacional só vai produzir ódio e teorias da conspiração, porque estará a ser coordenada por visões “a partir de cima”, que não estarão devidamente sensibilizadas para as particularidades das bases. Alienado, o utente ou se deixará ir na corrente, mesmo que se mate pelo caminho, ou revolta-se contra a chefia mais próxima (mesmo que esta seja apenas mais uma engrenagem no sistema).

Hoje, a minha avó teria sido seguida num centro de saúde ou num obstetra privado. Quaisquer alterações à sua saúde com a gravidez teriam sido monitorizadas e, em último caso, ela provavelmente teria ficado de baixa médica logo numa fase inicial da gravidez ou classificada como gravidez de risco. Em caso de hipertensão acentuada e/ou pré-eclampsia teria sido internada e o parto induzido quimicamente. No extremo, teria tido uma cesariana ainda antes das 38 semanas de gestação. Mas a simples vigilância com o médico de família, medicação e o devido descanso poderiam ter evitado várias complicações e a minha avó até poderia ter equacionado um parto domiciliar, se assim fosse o seu desejo, acautelando as devidas regras de segurança. A ciência teria sido respeitada e a liberdade da minha avó, assim como a sua saúde e a da criança, não estariam em causa.

Não é nesse sentido, porém, que se caminha. O que a OMS propõe leva-nos a uma mercantilização da saúde, onde a tecnologia impera e todos os outros parâmetros de bem-estar são negligenciados. Em vez de se investir em melhorar sistemas de saúde e a literacia científica das populações (saúde e educação tendencialmente gratuitas, como diz a nossa própria Constituição) o foco está no negócio farmacêutico.

(continua neste link)

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