1. Sócrates
Sócrates, o pai da filosofia, morreu envenenado com cicuta, por sentença do tribunal de Atenas. O crime? Corromper os jovens com as suas ideias. Figura controversa do seu tempo, percorria as ruas de Atenas interpelando os cidadãos e questionando tudo, inclusive a origem dos seus pensamentos. A democracia de Atenas encontrava-se a ser consumida pela retórica, ou seja, o diálogo entre pares tinha sido substituído pela persuasão – a luta por ser o dono da razão – e Sócrates tentava à sua maneira alertar para esta degradação. Não conseguiu convencer os seus juízes da virtude das suas intenções e recusou-se a fugir. Ao morrer nestas condições, provocou uma cisão no pensamento filosófico ocidental, nomeadamente por meio de Platão, seu discípulo, que marca a forma como olhamos o mundo até aos dias de hoje.

Aquilo que Sócrates defendia está de algum modo expresso na letra da música “The sound of silence” de Simon&Garfunkel: “e na luz nua eu vi; dez mil pessoas, talvez mais; pessoas falando sem falar; pessoas ouvindo sem ouvir; pessoas escrevendo canções que as vozes nunca compartilham; porque ninguém ousa perturbar o som do silêncio”. O silêncio é, na minha interpretação, a ausência de (auto)crítica. Aceitar as coisas como nos são dadas, sem ao menos indagar a origem de tais ideias, provocando com isso o caos social, porque “o silêncio, tal como o cancro, cresce”, consumindo tudo e todos na sua depressão.
2. O silêncio
A ilusão de consenso científico ao longo da pandemia de COVID-19 levou a políticas desastrosas, como os confinamentos como principal exemplo. Ficou claro, mesmo às vésperas dos confinamentos em 2020, que o movimento económico causado por eles lançaria dezenas de milhões em todo o mundo na insegurança alimentar e na pobreza profunda, o que de facto aconteceu.
Stefan Baral, epidemiologista da Johns Hopkins, relatou que uma carta que escreveu sobre os possíveis danos dos confinamentos em abril de 2020 foi rejeitada por mais de 10 revistas científicas e 6 jornais, por vezes com o pretexto de que não havia nada de útil nela. Foi a primeira vez na sua carreira que não conseguiu publicar um artigo em lugar nenhum.

Estava claro que o encerramento de escolas – em alguns locais do mundo com duração de dois anos ou mais – iria arruinar as oportunidades de vida das crianças e a saúde e o bem-estar futuros onde quer que fossem implementados. O quadro emergente de perda catastrófica de aprendizagem, especialmente entre crianças pobres e de minorias (com menos recursos disponíveis para substituir a escolaridade perdida), significa que os confinamentos alimentarão a pobreza geracional e a desigualdade nas próximas décadas.
Estudos prévios sobre encerramentos das escolas em Hong Kong e Singapura apontavam para a total ineficácia desta medida, podendo até inclusive piorar a situação. As evidências empíricas de lugares como a Suécia, que não impôs confinamentos draconianos ou fechou escolas e que têm uma das menores taxas de mortalidade por excesso de todas as causas na Europa, sugerem que os confinamentos falharam em toda a linha em proteger a saúde da população durante a pandemia.
A ilusão de consenso em torno do uso adequado das vacinas contra a Covid foi outro grande desastre de saúde pública. As autoridades de saúde pública elogiaram os testes randomizados das vacinas contra a Covid como fornecendo proteção completa contra contrair e espalhar a doença. No entanto, os ensaios em si não tiveram a prevenção da infeção ou transmissão como objeto de medição, para dizer o mínimo.
Em vez disso, os testes mediram a proteção contra a doença sintomática por dois meses após uma sequência de vacinação de duas doses. No outono de 2020, o diretor médico da Moderna, Tal Zaks, disse ao BMJ: “O nosso teste não demonstrará prevenção da transmissão (…) porque, para fazer isso, era necessário testar as pessoas duas vezes por semana por períodos muito longos, o que se torna operacionalmente insustentável.”
Não foram feitos testes a grávidas, não se procurou efeitos na fertilidade, nem de toxicidade. Apesar destes factos, as autoridades de saúde pública insistiram no mantra “segura e eficaz” e iniciaram toda uma política de coerção vacinal, certificados e testagem massiva.
Então porque foram os críticos da gestão covid apelidados de “negacionistas”, “chalupas” e muitas vezes acusados de infiltrados de extrema direita?
3. A extrema-direita
Desde os anos 80, com a crise da SIDA, que a Big Pharma começou a utilizar uma linguagem humanitária, emprestada de grupos ativistas, na sua estratégia de marketing, conseguindo inclusive o apoio de alguns ativistas radicais na promoção de determinado discurso.
Constata Mick Hume, no seu livro Direito a Ofender, que é comum no debate político calar o adversário com um “fascista!”, querendo com esta afirmação insinuar que as ideias do oponente são ignorantes e preconceituosas. A verdadeira extrema-direita, porém, é bastante mais refinada e, ao contrário do que lhe apontam, como tão bem defendeu Hannah Arendt, também tende a ser progressista.

De uma forma geral, o pensamento extremista conservador assenta em crenças de predestinação de um povo, cultura ou crença e na existência de uma ameaça, real ou imaginária, ao seu caminho de domínio. Neste aspeto, também procura a salvação e o bem comum, tem é uma visão do mundo mais belicista, mais cínica e menos crente nas capacidades de mudança do ser humano. É um discurso de ódio sim, feito por pessoas desorientadas e zangadas com as falhas das promessas de progresso social e liderado pelos “messias” que oferecem todas as respostas.
Atualmente, porém, recebe a classificação de extrema-direita todo aquele que se aproxima do conservadorismo pela forma. Basta ter opiniões que sejam consideradas inimigas do “progresso científico”, demasiado antiquadas, elitistas e com noções preconceituosas contra indivíduos e culturas diferentes. Nascido na Revolução Francesa (quando um grupo tentou reinstalar a monarquia deposta), o conceito extrema-direita teve o seu auge no Nazismo, pelo que acaba a implicar qualquer pessoa que tenda a negar e/ou a oferecer outra interpretação a factos histórico-científicos, como o Holocausto judaico.
Hoje, a extrema-direita é, portanto, tudo e nada. É a pessoa desorientada que recusa ajuda, é a pessoa zangada que se altera em público, é o crítico que ousa expressar ingenuamente a sua opinião, é o honesto que não obedece por convicção, é o oportunista que manipula o meio para atingir os seus objetivos.
4. A crítica socrática
Criticar o sistema é essencial para a democracia, porque é a crítica que mantém viva a vigilância sobre o poder eleito pelo povo. Mas a crítica construtiva nada tem a ver com discurso de ódio. É dando voz e criando debate que se clarificam dúvidas. Censurar com medo do opositor só aumenta a revolta, criando espaço ao nascimento de um monstro extremista que nada mais é que o resultado de diferentes vozes críticas caladas à partida.
É natural que pessoas tipicamente desconfiadas do sistema, ou com maiores convicções, tenham sido as primeiras a manifestarem-se contra medidas que naturalmente atentavam contra as suas liberdades individuais. Menos normal foi a evidente caça às bruxas que foi feita contra epidemiologistas, virologistas, médicos e outros profissionais de saúde que se manifestaram contra as medidas em curso, alegando que a perigosidade do vírus estava a ser manifestamente ampliada, pacientes com outras doenças estariam a ser negligenciados e que a gestão covid focada em grupos de risco seria muito mais eficaz.
Chamar a estas pessoas de “anti-vacinas” – uma outra versão do rótulo “fascista” – é de uma ignorância atroz. Sugerir que têm interesses económicos por trás é simplesmente ridículo: ninguém ganha nada em ir contra a corrente e ser uma voz solitária. A única coisa que ganha é a perda de credibilidade.
5. Caçar bruxas
Nos anos 50, a ação do senador Joseph McCarthy contra uma alegada conspiração comunista dentro do governo ficou conhecida como a “caça às bruxas”. A alusão referia-se a um episódio de histeria em massa que decorreu em Salem, no século XVII, entre os isolados colonos puritanos, que acabou na morte de 20 pessoas acusadas de bruxaria (na prática os “párias” daquela sociedade). Já McCarthy afirmou ter uma lista de 205 comunistas infiltrados no Departamento de Estado, informação essa que passou para 57, num processo cheio de inconsistências e que afetou profundamente várias figuras da época, que só lutavam por mais direitos laborais.
Com os seus pilares fundacionais em seitas religiosas que fugiam do Velho Mundo, não será por acaso que um dos livros mais conhecidos da literatura norte-americana é “A letra escarlate”. Em épocas de polarização provocadas por extremo isolamento social, quem se desvia do caminho de “Deus” acaba por levar com rótulos, seja um “A”, uma estrela de David ou um bloqueio no Facebook. Criada um século depois de Salem, a democracia norte-americana reconheceria que é no diálogo que está a força de um povo.
O maccartismo foi um episódio de paranóia no auge da Guerra Fria, estimulado pelo medo do sistema comunista, mas o receio com a infiltração russa nunca desapareceu de facto.
Em 2017, uma outra lista de supostos agentes russos agitou a imprensa e a classe política americana. Um novo grupo chamado Hamilton 68 afirmou ter descoberto centenas de contas afiliadas à Rússia que se infiltraram no Twitter para semear o caos e ajudar Donald Trump a vencer a eleição. A Rússia foi acusada de hackear plataformas das redes sociais e usá-los para dirigir secretamente eventos dentro dos Estados Unidos.
Veio-se a verificar que tal informação não estava correta. Depois de rever a lista secreta da Hamilton 68, o oficial de segurança do Twitter, Yoel Roth, admitiu a que a sua empresa estava a permitir que “pessoas reais” fossem “rotuladas unilateralmente como agentes russos sem provas ou recurso”.
6. A desinformação
A 23 de dezembro de 2016, o presidente Obama assinou a Lei de Combate à Propaganda Estrangeira e à Desinformação, que usava a linguagem da defesa da pátria para lançar uma guerra de informações ofensiva e aberta. Começou a veicular-se que a Rússia explorava as vulnerabilidades da internet aberta para contornar as defesas estratégicas dos EUA, infiltrando-se nos telefones e computadores dos cidadãos civis. O objetivo final do Kremlin era colonizar as mentes de seus alvos, uma tática que os especialistas em guerra cibernética chamam de “hacking cognitivo”.
Não obstante a gravidade da ameaça, o medo da invasão russa foi tratado como uma questão de sobrevivência nacional, uma vez que se colocava em causa a hegemonia da influência norte-americana. Num artigo de dezembro de 2016 da Defense One, o jornal da indústria de defesa, dois membros do governo argumentavam que as leis escritas para proteger os cidadãos americanos da espionagem do Estado estavam a colocar em risco a segurança nacional. De acordo com Rand Waltzman, ex-gerente de programa da Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa, os adversários dos Estados Unidos desfrutavam de uma “vantagem significativa” como resultado de “restrições legais e organizacionais às quais estamos sujeitos e eles não”.

O ponto foi repetido por Michael Lumpkin, que chefiou o Centro de Engajamento Global (GEC) do Departamento de Estado, a agência que Obama designou para executar a campanha de contra-desinformação nos EUA. Lumpkin destacou a Lei de Privacidade de 1974, uma lei pós-Watergate que protege os cidadãos americanos de terem os seus dados coletados pelo governo, como antiquada.
A mensagem do establishment de defesa dos EUA era clara: para vencer a guerra da informação – um conflito existencial a ocorrer nas dimensões sem fronteiras do ciberespaço – o governo precisava dispensar distinções legais ultrapassadas entre terroristas estrangeiros e cidadãos americanos.
A desinformação tornou-se a nova caça às bruxas e a vigilância massiva, para a qual Edward Snowden alertara em 2013, estava a ser legitimada sob a ótica do combate ao mal.
7. A vigilância para o bem comum
Desde 2016 que os EUA vêm gastando milhares de milhões de dólares num complexo de contra desinformação, com o apoio de empresas privadas como Facebook, Twitter, Google e Amazon. Sempre houve proximidade entre a defesa norte-americana e as empresas privadas de tecnologia, mas esta nova aliança institucionalizou sob uma agenda comum o que antes era um circuito da carreira burocrática, que partia do setor público para terminar, com mais benefícios, no privado. Com ela arrastou o resto da sociedade que tem nos media a sua base de compreensão do mundo.
Foi assim que a “guerra contra a desinformação” criada pelo governo se tornou a grande cruzada moral do nosso tempo. Os oficiais da CIA em Langley compartilham hoje uma “causa” social e moral com os jovens jornalistas da moda em Brooklyn, organizações sem fins lucrativos progressistas, think tanks financiados por George Soros em Praga, consultores de equidade racial, consultores de private equity, funcionários de empresas de tecnologia de Silicon Valley, pesquisadores da Ivy League e até a realeza britânica. Os republicanos Never Trump uniram forças com o Comitê Nacional Democrata, que declarou a desinformação online “um problema de toda a sociedade que requer uma resposta de toda a sociedade”.
8. O efeito borboleta
E voltamos ao meu primeiro artigo “A Borboleta no Caos”.
O evento Covid-19 foi em si uma violenta reação ao crescimento dos populismos e movimentos mais à direita, potenciada pela ascensão das redes sociais. Ao mesmo tempo, a influência chinesa no Ocidente foi-se infiltrando nos Governos e na Academia ao longo de décadas. Tornou-se aceitável achar que a Oriente as coisas funcionam muito bem e que em grande medida se deve ao elevado controlo que exercem sobre os seus cidadãos.
A questão é que é que o crescimento do discurso de ódio não é o problema: é um sintoma. Algo vai mal a Ocidente e as pessoas voltam-se para quem lhes dá respostas.
No pós-II Guerra Mundial começámos a criar tecnologias de informação e comunicação que pudessem sobreviver a uma guerra nuclear. Quase um século depois, ampliámos artificialmente a inteligência humana, mas comunicamos cada vez menos. Queremos todos permanecer em silêncio e este, como um cancro, cresce.
Sócrates começou a deambular por Atenas porque via a sua sociedade a degradar-se na competição. Os seus herdeiros não estão a morrer envenenados por cicuta, mas são bloqueados nas redes sociais, chamados de negacionistas, chalupas e extrema-direita.
Esperava-se que a Covid-19 representasse algo na história da humanidade: humildade perante o planeta, solidariedade, bem comum, a vitória do espírito humano. Esqueceram-se do efeito borboleta: a vigilância. Sem diálogo e presos à manipulação de algoritmos preditivos, não somos muito diferentes de qualquer outro animal selvagem que mata por sobrevivência, pelo que qualquer fim superior estava aniquilado à partida.
O que foi a Covid-19? Para mim, foi caos, a essência da informação que se diz falsa. Não há nada de mais profundamente humano.
Muito bem escrito, parabéns.