“ÀS VEZES APETECE-ME GRITAR”

“Nem o Mandela esteve preso tanto tempo. Sou tratado como um monstro, mas monstruoso é o que eles me estão a fazer.” - Mário Reis, recluso na cadeia de Vale de Judeus.

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“Quero dizer que tenho 60 anos, estou doente. Ainda há dias desmaiei duas vezes. A enfermeira pensava que eu consumia drogas.

– Você está magro… disse a enfermeira.

– Não sei o que é um prato de comida digna de um ser humano. Sopa é água suja. Dão-nos carne podre, peixe podre.”

Diálogo factual com um recluso no Estabelecimento Prisional de Vale de Judeus. Há 29 anos que Mário Reis vive nestas condições, independentemente da prisão onde esteja.

DETIDO HÁ QUASE 30 ANOS

O caso deste condenado pela justiça portuguesa já foi abordado antes em jornais e a SIC dedicou-lhe 30 minutos de reportagem no programa “Vidas Suspensas”, em 2019.

Como nada mudou. Aqui está, de novo, a história deste cidadão.

Mário Reis tem um cadastro policial extenso, soma furtos, assaltos a bancos, condução sem carta, falsificação, posse de arma proibida, evasão e tráfico de droga. Nunca feriu alguém. Assaltava e roubava para comprar droga. Hoje está livre da toxicodependência.

A questão jurídica que prende Mário Reis a cumprir uma pena muito superior ao máximo legal, está relacionada com penas sucessivas sem que tenha sido feito o cúmulo jurídico. Sobre isto, o advogado Vítor Carreto, que tem acompanhado Mário Reis, explicou-nos que quando o recluso foi detido a lei permitia o cúmulo jurídico de processos autónomos, mas que, entretanto, alteraram a lei.

Mário Reis foi tramado por essa alteração. “As penas sucessivas estão previstas no artigo 63º do Código Penal”, explica o advogado, acrescentando apenas que “o sistema é péssimo, sem condições básicas de dignidade humana”.

O que diz o artigo 63º é que “se a soma das penas que devam ser cumpridas sucessivamente exceder seis anos de prisão, o tribunal coloca o condenado em liberdade condicional, se dela não tiver antes aproveitado, logo que se encontrarem cumpridos cinco sextos da soma das penas.” Ou seja, fazendo as contas, Mário Reis há de sair da prisão daqui a uns 4 anos, se não morrer antes.

O advogado continua a tentar que Mário possa sair em liberdade condicional. Para o jurista, o Estado tem culpa pelo modo como maltrata este cidadão e não hesitou em patrocinar uma ação contra o Estado, ainda pendente. Nessa ação, Vítor Carreto explica que o recluso “está condenado a morrer na prisão”, face “à indefinição e prolongamento ad eternum das penas”, e que o Tribunal de Execução de Penas rejeita sucessivamente atribuir-lhe a “liberdade mitigada”, situação que “viola as regras do direito à liberdade, da reinserção social e do respeito pela dignidade humana”.

recorte do processo de Mário Reis contra o Estado

“A mim torturam-me psicologicamente”

Estamos a falar de um recluso reivindicativo. Em sua defesa, Mário já enviou cartas a todos os órgãos de soberania, onde explica que está detido há muito mais de 25 anos, pelo que pede que intercedam para que possa sair em liberdade condicional. Sem resultados, com a perceção de que não tem nada a perder, sempre que pode “põe a boca no trombone”.

“Há várias formas de torturar pessoas, a mim torturam-me psicologicamente. Todos os anos vou ao juiz de Instrução de Penas por causa da liberdade condicional, mas sou perseguido pelo sistema. Porque luto pelos meus direitos, porque dou voz aos meus companheiros. Eles não gostam. Sou muito mal visto. Os relatórios são sempre desfavoráveis. O juiz não me conhece nem procura conhecer. Baseia-se apenas nos relatórios. Vejo pessoas que matam e saem da cadeia ao fim de 3 anos. Não matei ninguém, apenas roubei 4 bancos.”

Mário Reis descobriu que assaltar bancos é um crime sem perdão, a não ser que seja o próprio banqueiro a fazê-lo. Depois de 29 anos preso, perdeu todos os vínculos familiares que tinha. Mal conhece a filha. As irmãs emigraram, vivem longe. E a reintegração que o sistema prisional disponibiliza classifica-a como “uma treta”.

Sente-se tratado “como lixo”. Diz que a sociedade prefere ignorar os problemas que o sistema prisional cria, em vez de os prevenir. “O diretor da cadeia está há 3 anos para marcar uma reunião comigo. Queria falar-lhe da minha situação, da falta de assistência médica, estou há anos para ir a uma consulta num hospital. Mas ele não me chama. O sistema prisional está podre. Uma cadeia é um ‘Estado dentro do Estado’, isto é, nem o próprio Estado manda aqui dentro.”

Se alguma vez chegar a sair em liberdade, Mário garante que “para a cadeia não venho mais. Prefiro a morte a tal sorte. Aqui as pessoas são esmagadas como baratas. Não há direitos aqui dentro. Ontem, um recluso foi-se embora, ao fim de 14 anos sem ter tido uma saída precária. Como é que uma pessoa, ao fim de tantos anos, se vai reintegrar?”. É uma questão retórica, Mário sabe qual a resposta.

No exemplo dos outros, vê o seu próprio futuro. “Daqui a 4 anos, com 5/6 da pena, vou sair sem ninguém que me apoie. Aos 64 anos, o que vou fazer? Tenho cursos de canalizador, serralharia, padaria, mas quem me vai dar trabalho?”

Mário reconhece e arrepende-se dos erros do passado, “mas tento ser melhor. Aqui dentro estão pessoas, seres humanos abandonados, que mais parecem farrapos. A forma como somos tratados, a alimentação miserável. As pessoas deviam ter vergonha disto. Às vezes apetece-me gritar.”

E foi o que fez, agora.

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