MIMO

Estava tão sumida a voz dela ao telefone, sei que a vida não lhe corre bem, convidei-a para jantar. Tirei a carne de vaca picada do congelador, vou fazer empadão

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Empadão é prato de família. De crianças à volta da mesa e o avô que nunca mais se vem sentar e o periquito que não se cala. É prato de amor, de ternura, comida que custa pouco a fazer, ainda menos a comer. Empadão é mimo.

Começo a picar alhos com fartura, recordo as nossas noites intermináveis. Saía sempre produzida, com aquele brilho nos olhos que ilumina os outros. Pico as cebolas bem picadinhas, ao ritmo com que ela continua a dançar sem parar.

O plim do micro-ondas lembra-me os deadlines que a sufocam sempre que mergulha num trabalho. Dá voltas e voltas, quer tudo para conseguir alguma coisa. Nunca sabe por onde começar, já não se lembra de qual é o objectivo. Chega sempre ao fim, conta histórias lindíssimas, tem talento, muita emotividade, alma de artista, por isso mesmo sofre com agonia durante o processo de criação.

Tempero a carne com bastante pimenta, uma pitada de cominhos, pimentão-doce à vontade, sal, uma folha de louro. Não são precisos muitos temperos, tal como a nossa amizade. Espreito o frigorífico, ainda tenho um resto de chouriço de murça, desfaço-o com a varinha mágica e junto à carne mas reservo umas rodelas para o toque final.

Enquanto envolvo tudo com as mãos, lembro-me das festas que lhe faço no cabelo enquanto chora por mais um idiota que lhe partiu o coração. Tem uma capacidade gigante para amar, sai coladinha a cuspo, mais sai, o amor vence a dor.

Deixo-a marinar e passo às batatas, foi ela que me ensinou o segredo. Cozem-se até ficarem desfeitas, escorrem-se, acrescenta-se uma colher de manteiga pois, como diz, “margarina é uma falsificação infeliz”. Uma pitada de pimenta branca, sal, noz-moscada ralada, tempero essencial para que puré seja puré. Pego na batedeira que se usa para as claras em castelo, despejo um copo de leite morno, para não fazer grumos. “Fica fofo, tão fofo que parece algodão doce”, parece que a estou a ouvir.

Azeite na caçarola, alhos e cebolas, mexo e recordo os seus sonhos adiados. Quer conhecer o mundo, passar uns meses em cada lugar, filmar, gravar, fotografar, falar com as pessoas. Depois há-de escrever um livro ou fazer um filme sobre tudo  o que viveu e sentiu. Acredito que o fará, precisa  é de dar o salto sem rede. É sem rede que consegue ir mais além.

Acrescento a carne ao refogado, ponho polpa de tomate a olho, tem de saber a tomate, mas qb. Uma colher de açúcar equilibra a coisa. No fim rego tudo com vinho tinto, é a minha costela beirã, raramente uso o branco. Fica encharcado, está perfeito. Nenhuma de nós gosta de coisas certinhas.

Não quero um empadão firme, prefiro antes que se desmanche no prato, tipo comida para bebé. Até que no dia seguinte acaba por ficar direitinho mas não seco.

Uma camada de puré no pirex, outra de carne, outra de puré. Aliso tudo com a espátula, com a doçura que ela me dá sempre de mão beijada.

Dois ovos batidos para cima da camada final, largo a olho pão ralado que me faz lembrar as purpurinas que gostava de espalhar pelo cabelo e até no decote, quando saíamos à noite e tínhamos 30 anos. Brilhava como uma estrela, ainda é uma estrela mas penso que não o sabe. A rematar, meia dúzia de rodelas de chouriço de cor bordeaux escura, igual aos batons com que contorna os lábios com uma perfeição exímia.

Empadão no forno, uma toalha aos quadrados na mesa e a loiça cor-de-rosa que um dia disse ser feita por um “fabricante de mealheiros”. Abro uma garrafa de vinho, sei que não está para sobremesas.

Vou buscar o CD dos Morcheeba aquele que ouvimos até à exaustão num verão perfeito na costa vicentina. Acendo incenso e velas. Oiço o som da campainha.

Está sem brilho nos olhos. Abraço-a. Falamos de trivialidades, sorri ao reconhecer a música. Sentamo-nos à mesa. A partir daí, só abri a boca para comer. Pus todo o meu amor no empadão, agora quero é ouvi-la. Amigos são a família que escolhemos.

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