Neste tempo de Páscoa, percebo, ano após ano, que eu posso ter saído da aldeia, mas a aldeia não saiu de mim.
A excitação da época pascal começava no Domingo de Ramos. Sem fé e sem o mínimo conhecimento do significado dos rituais religiosos desta época, só me interessavam as cruzes feitas de canas e enfeitadas com alecrim, rosmaninho, jarros brancos e outras flores da primavera. De vestido domingueiro, eu percorria a longa rua da aldeia, do cruzeiro até à igreja, erguendo a minha cruz bem alto. Aí, juntava-me às miúdas da minha criação, umas com cruzes, outras com singelos ramos, e cumpríamos escrupulosamente os ritos da missa do Domingo de Ramos, que terminava abençoando-os com água benta.
Como toda a gente, eu acreditava na diferença entre água benta e água vulgar, pela pia de pedra onde se encontrava, à entrada da igreja, ou outros recipientes onde se guardava. Tal como acreditava que era sangue de Cristo que o padre bebia por um copo de prata, e o corpo de Cristo que ele dava a comer em forma de hóstias a todos aqueles a quem a confissão limpara a alma.
Mas era o Domingo de Páscoa que me enchia de alegria. Adorava percorrer a aldeia atrás da pequena comitiva de acólitos de Cristo, envergando a opa vermelha, um rapaz levando o crucifixo, outro a caldeirinha com água benta, que iam entrando nas casas de porta aberta e dando o crucifixo a beijar a todos os presentes, repetindo “corpo de Cristo”, dispostos à volta duma mesa, farta de iguarias doces, de que o folar era o rei.
Raramente se demoravam para comer uma fatia de bolo ou beber uma jeropiga, porque era longa a rua e este ritual tinha de ser repetido em quase todas as casas.
Lembro-me dos tempos em que era o pároco da aldeia a conduzir o rito da visita pascal e assisti, incrédula, à sua substituição por leigos. Compreendi, já adulta, que a idade avançada do pároco e as várias paróquias nas quais tinha de zelar pela alma dos paroquianos, forçara aquela e muitas outras mudanças, atribuindo aos leigos cada vez mais responsabilidades.
O ateísmo, não confesso, da minha mãe e a ausência do meu pai, que na época pascal já tinha regressado aos Estados Unidos, onde estava emigrado, faziam da minha casa uma das raríssimas em que a cruz não entrava. Em que “não se beijava o Senhor”, como se dizia então e se diz ainda.
Talvez por isso eu tivesse tanto gosto em entrar nas casas de porta aberta e o tenha conservado até à idade adulta, já bem adulta, ritual que cumpria, ano após ano, sempre com a minha amiga Judite. Eram as férias da Páscoa, tempo de regressar às nossas origens, nós e tantos outros portugueses, vindos das cidades e também de países estrangeiros onde estavam emigrados.
Entrávamos nas casas de familiares, cumpríamos o ritual de “beijar o Senhor” e não fazíamos cerimónia para comer umas fatias de bolo e beber um cálice de jeropiga. A nossa tarde do Domingo de Páscoa era passada neste caminhar, entrar e sair, com pouco tempo para conversas. Mas havia duas casas onde nos demorávamos tempo bastante para pôr a conversa em dia: a da dona Adelina e do senhor Germano, a meio da longa rua da aldeia, e a do dr. Hélder, última casa a ser abençoada com a visita pascal.
Dona Adelina, de quem me recordo desde sempre com os cabelos cor de neve, mãe da minha colega de escola, Maria da Conceição, Sãozita como lhe chamávamos, abria-nos a porta e abria os braços para um caloroso abraço que devia durar um ano. Dizia, como se, cada vez que me via, acabasse de me reconhecer: “Minha Alice!”
Uma mesa repleta de iguarias doces, feitas por mãe e filha, uma sala impecavelmente limpa e alindada para a ocasião convidava a um longo momento de degustação e conversa. Quem morreu, quem casou, quem se divorciou, quem teve filhos…. Ali se desfiava o rosário das ocorrências da aldeia, enquanto discretamente eu ia olhando o relógio e lembrando a Judite que ainda deveríamos ir a casa do dr. Hélder.
Um foguete de artifício anunciava a chegada ao fim da aldeia, daí até à última casa da visita pascal, já na volta, era coisa de meia hora, tempo bastante para mais um cálice de jeropiga, um abraço, um “Deus queira que para o ano ainda cá estejamos todas, com saúde.”
Depois, em passo apressado, percorríamos a rua até ao cruzeiro, em frente ao qual terminaria a visita pascal, em casa do dr. Hélder, numa sala que só era aberta nesse dia. Chão, móveis, loiças, cristais, naperons, retratos na parede, tudo era escrupulosamente limpo para receber os emissários de Cristo. Ali se juntavam os familiares e os vizinhos da rua, que tem o nome do seu pai, Sargento Abreu, por sinal também a rua da casa dos meus pais.
Ali nos demorávamos, até ser já noite cerrada, os acólitos de Cristo e mesmo os que, sem fé, não esqueciam as tradições.
Assim recordo a Páscoa, muitos que já partiram para a terra do “nunca mais de lá voltam”, o domingo da cruz e caldeirinha, o dia de “beijar o Senhor”, as ruas perfumadas com cheirinho de alecrim e rosmaninho e as casas com o cheiro do folar, cozido e dourado no forno a lenha.
Tão importante que se passem a escrito essas evocações de algo que se vai perdendo e consolidava comunidade.