POR AMOR

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A minha tia Carolina permanecia solteira até aos 50 anos. Uma tarde de Primavera apaixonava-se pelo senhor sentado no banco oposto, pintado de vermelho vivo, que lhe sorria carinhosamente no Parque, virado para as águas do Mondego.

Carinhoso era o adjectivo que ela escolhia, para mitigar a revolta faseada que ia provocando nos irmãos, à medida que acorriam lá a casa para colher pormenores. Invariavelmente perguntavam se ela tinha endoidecido: apaixonar-se por um estranho uns trinta anos mais velho, de quem nem sabia o nome…

“José de Castro, e é quanto me basta por agora. Ex-empresário de lanifícios na Covilhã, viúvo há cerca de ano e meio. Que mais querem?”.

“Empresário…- atirava o mais velho – talvez tenha umas notas guardadas e em vez de casamento, nos pague uma jantarada”.

E entrando a conversa no domínio do jocoso, já faziam a ementa com marisco, leitão e bom espumante, antes de os deixarem ir a caminho da…Quinta das Lágrimas, para passarem a noite de núpcias no quarto de D. Inês. Nem precisavam de atravessar o rio.

“Decerto tem a vida estabilizada, um palacete aqui pelas redondezas, mas tão mais velho do que tu Carolina…” – dizia-lhe o irmão Zé com a elegância de sempre.

“Veio a Coimbra com os filhos ver umas casas de repouso”.

“Ah…então deixa-o repousar e põe-te ao fresco enquanto é tempo, menina” – atirava o brincalhão do António a gaguejar, por um susto apanhado em criança.

“Sempre serás o boçal que nem apanhando na boca em pequeno, conseguiu moderar os modos “ – dizia ela pesarosa.

A mais nova só se ria. Já viúva, achava piada a irmã embeiçar-se, com meio século de vida, por um cavalheiro com mais trinta primaveras. E frisava a palavra para animar ainda mais o ambiente.

“Uma árvore centenária que te saiu ao caminho, Carolina” – dizia a irmã Aida. Tanto gostava de rir, que fizera mais de sessenta quilómetros para se juntar ao coro de gargalhadas que antecipava, mal sabia da notícia.

O rapazes eram cinco. O mais novo e um dos mais velhos ficavam silenciosos, apreensivos demais. Os outros insistiam em pedir ajuda à primeira que nascera. Ajuizada bastante, havia de pôr fim à insanidade da irmã e dar-lhe uma descasca exemplar.

“Mas qual insanidade, parvalhões…apaixonei-me uma vez na vida e não me podem tirar isso”.

E a irmã mais velha entrava, com a sisudez enfática habitual, que não deixando  de manter distâncias, lhe atraía respeitosa deferência. Vinha acompanhada do seu Afonso, um quase aristocrata alto e magro que nada sabia fazer. Caçava uns patos e perdizes, vendia meia dúzia aos restaurantes da cidade, promovia o já famoso estúdio de fotografia do irmão. Gozava a vida sem preocupações.

A mulher mandava calar a turba enlouquecida, com a mão esquerda levantada, e prestava atenção à “noiva”. Ouvia…recapitulava…

“Então ele nada tem…já repartiu os bens com os filhos e só lhe ficou uma magra reforma para pagar a casa de repouso, dizes tu”…

Carolina acenava com a cabeça, mas amava-o, insistia. Não podia deixar que o encerrassem numa casa onde lhe fechariam aquele sorriso angélico num mês.

E a mais velha pronunciava a sentença que deixava os outros mudos. “A nossa irmã tem direito e idade bastante para decidir a vida dela. Se houver problemas – e olhava-a no fundo dos olhos  – saberá que poucos aqui lhe darão  apoio”….

Carolina assentia com a cabeça. Esperava a venda da casa da mãe, a parte insignificante que lhe cabia depois da divisão por cada um dos nove. E o casamento celebrava-se no fim de Setembro, na igreja de um povoado distante, perto da morada de Aida. Ambos discretos, ele de fato de lã cinzento de corte impecável e camisa branca, ela com um ramo de flores campestres na mão direita, rente ao vestido curto azul-céu, de algodão e lã.

Aida oferecia o almoço no terraço da moradia, tapado com panais e flores amarelas pendentes. Coisas da Ana, a mais nova, a mais alta e a mais louca. Apareciam cinco irmãos, sozinhos ou com as famílias, e não havia marisco. Só queijos e presunto para entrada e muito cabrito assado. Depois vinham morar para a Rua Alexandre Herculano, que me ficava na rota da escola para casa.

E era assim que eu conhecia o José de Castro, com o mais lindo sorriso que um jovem de muita idade pode ter. Mesmo de boca fechada, riam os olhos quando fixava o rosto de cada um. A tia Carolina tratava-o com o carinho inexcedível de quem ama. “Queres mais um chá, meu amor?”

Mas as dificuldades vieram. As reformas não chegavam para fazer frente à doença pulmonar do José de Castro, quando passava os oitenta e cinco. Ainda moravam uns meses na minha casa, depois aqui e ali à medida da vontade da família. Até que um dia a tia Carolina decidia fazer biscoitos para pessoas amigas tornadas clientes habituais, e engrossar o magro orçamento de ambos.

Voltavam à casa perto dos Arcos do Jardim, com um terraço minúsculo forrado de calçada portuguesa. No canto que acolhia o sol, ao fim da tarde, o José ficava na cadeira de verga forrada de almofadas de linho cru, com uma manta nas pernas a ler um policial.

Às vezes passava um bocadinho da tarde com eles. Vinha à cozinha vigiar o chá com a minha tia e aspirar o aroma dos biscoitos, que apeteciam mal saíam do forno – os mais bonitos para um lado, destinados aos sacos de papel, os imperfeitos para o outro, para serem consumidos ali mesmo.

Perguntava-lhe se conseguia tratar de tudo sozinha: dar-lhe banho, carregá-lo até à cama, cumprir os preceitos médicos rigorosos.

“Ele ajuda, minha querida…e por Amor tudo se faz”.

E fez…Carinhosamente tratou dele até o ver partir com 91 anos, repetindo pela ultima vez o beijo na boca que todos os dias ele reclamava com os mesmos olhos sorridentes. Tudo por Amor. E nem por um momento se arrependeu da decisão, ou desejou abrandar o peso da rotina para escapar às obrigações.

Quem hoje embrulha com tal pureza o sentimento?

4 COMENTÁRIOS

  1. Que bela história de amor. Que emocionante ela é. A forma como Helena Ventura Pereira a conta faz-nos vivê-la, sentimo-nos quase família da tia Carolina e de seu marido José de Castro. Ficamos presos da leitura do princípio ao fim, simpatizamos um pouco menos com os irmãos trocistas da noiva e ficamos a torcer pelo casamento, que acaba por se realizar e ser feliz.
    Quero ver uma mensagem sub-reptícia nesta história: toda a gente tem direito ao amor e à felicidade, tenha que idade tiver.
    Muito obrigada, Helena Ventura Pereira. Esta história conforta-nos os corações e bem o precisamos nestes dias tristes.

  2. Belo conto. Enternecedor e até comovente.
    Tão meigo e com tão cativante sorriso, porque é que só aos 80 anos José de Castro logrou encontrar o amor? Esse é o tal mistério, de que ninguém tem a chave. Coisas da alma, do sentimento.
    O moral desta bonita história é que nunca é tarde para se ser feliz.

  3. Apetece de imediato dizer aquela frase batida «o Amor não escolhe idade». Além da história de amor, contada com a perícia de Helena Ventura já anotada nos anteriores comentários, direi que mais me tocou o retrato do ambiente familiar nessas circunstâncias, em que o velado desejo de arrecadar um cêntimo que seja duma suposta herança não se compadece com a ideia de ela vir a ser partilhada com um desconhecido, mesmo que de bonito sorriso. Encanta, por outro lado, o ambiente físico, Coimbra, que a Autora tão bem conhece.
    Parabéns!

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