Nunca parti um osso, nunca fui operada, mas há dias um médico passou um pequeno papel para que me deitasse numa marquesa e deixasse que mexessem dentro de mim.
Dias antes, tive de fazer a preparação para a intervenção cirúrgica. Dieta, 36 horas sem comer, oito das quais sem sequer poder beber água.
Como qualquer idiota que se preze fui à net “pesquisar”. Os cenários eram dantescos. Sim, eram possibilidades reduzidas, mas possíveis. Larguei a net antes que a net me engolisse de medo.
E a mamã apareceu. Atentas às voltas com o caminho em hora de ponta, lá fomos conversando e rindo, algo que há muito não acontecia.
Ouvi um plim no móvel, não liguei, a mamã estava na faixa do BUS e, sem me pedir opinião, enfiou-se com uma grande pinta para outra. “Bate por trás, bate, tu é que pagas”. Admirei a determinação e humor. Caiu outro plim, não liguei, andávamos à procura do maldito parquímetro para encher a barriga da EMEL.
Sentámo-nos numa esplanada, um café para ela, um micro-golo de água para mim. Ouvi outro plim. Que seca! Quem é que me está a chatear, afinal?
No primeiro sms as cinco mil hipóteses que temia de ter cancro caíram na calçada escorregadia.
Entreguei os exames e o medo dos efeitos colaterais da anestesia ao balcão da clínica. Deixei o telemóvel com a mamã, sugeriu pô-lo no silêncio. Não, quero saber que continua a tocar, cada plim é um sinal de esperança, quero estar lá dentro a saber que continuam a tocar plins.
Pediram-me para tirar a roupa. Despi as calças, a camisa e a memória das doenças com nomes caros que me tinham enchido a cabeça. Deixei de ser a pessoa mais importante dentro de mim.
A médica desejou-me bons sonhos, sei que sonhei muito, não me lembro. Resolvi antes viajar pela amizade de sonho com a minha tipa asneirenta.
Não gostei dela quando a conheci, nem um bocadinho. Falava super alto e em cada frase dizia cinco asneiras! Não me choco facilmente com a linguagem popular mas o rol contínuo de asneiras era inesgotável, intragável. O marido, pelo contrário, era educado, culto, divertido, sempre vestido com originalidade. Questionei-me várias vezes sobre o que é que ele fazia com uma tipa daquelas.
As asneiras não acabaram, penso que diminuíram, mas deixaram de me afectar pois cada frase asneirenta trazia a reboque uma gargalhada. Se inicialmente conversava mais com o marido, com o tempo fui-me aproximando da tipa asneirenta.
Com ela estava sempre bem disposta, era uma alegria, tinha exageros, sim, mas era uma alegria. O tempo deu-nos a partilha de sentimentos e vivências íntimas, segredos inconfessáveis. Não éramos assim tão diferentes. Entediamo-nos.
O meu cão quase sempre fazia xixi pelas pernas abaixo quando a via. Toda a gente de quem o meu cão gostava tinha um automático aval meu. Era boa gente. Eu bem que posso enganar-me com as pessoas, ele era infalível.
Mas havia uma coisa que me irritava. Tenho esta mania de que tiro fotos muito boas mas o meu cão nunca olhava para mim, virava sempre o focinho, uma frustração. Mas, com a tal tipa, bastava ela chamá-lo e ele fazia pose para ela! É que fazia mesmo!
Partilhávamos uma praça, a praça de toda a gente e toda a gente se dava com toda a gente. Bebíamos café juntas, muitos jantares, saímos para ir à outra praça quando a noite avançava. Era uma espécie de after que acabava às 4 da manhã.
A tal tipa asneirenta tornou-se habitue lá de casa. Aparecia sem ter que se fazer anunciada e ia ficando, ficando.
Uma vez, num jantar caseiro, abusámos um pouco no álcool. Só um bocadinho. Estava meio ressacada quando cheguei à praça no dia seguinte, encontrei-a com amigos, convidei todos para jantar. Os amigos desculparam-se, ela olhou-me com um ar muito sério, nunca tinha visto aquele ar tão sério. Deve estar de ressaca, pensei. Insisti, lá acabou por vir.
Enquanto palrava ao ritmo das voltas que dava com a colher de pau, ela areou um fervedor de água até ficar da cor original! Fiquei impressionada. Depois, serenamente perguntou: “Tu não te lembras, pois não?” Do quê? Repetiu a pergunta com um sorriso: “Tu não não te lembras mesmo, pois não?” Não me lembro do quê pá?
“Saímos do after, estavas…bem disposta, convidaste-me para comer qualquer coisa aqui em casa, pediste que levasse duas cervejas. Quando percebeste que não tinha trazido nada, gritaste, descompuseste-me, mandaste-me embora, bateste a porta com um grande, grande, grande estrondo, quase que me atingiste no nariz!”
Olhei para ela incrédula. Pedi desculpas mil vezes, não me lembrava de todo, de nada, nadinha. E assim continuou a nossa amizade.
Na praça e arredores tornou-se uma rock star, conhecia toda a gente, combinava planos de trabalho com toda a gente, tornou-se de toda a gente.
Num dia demorámos 20 minutos para percorrer 300 metros. Vi tanto de mim nela, tanto. Com jeitinho disse que talvez chegasse o dia em que tudo o que haveria de querer era fazer esses 300 metros na dela, apenas com olás. Olhou-me fixamente, sempre deu importância aos erros que partilhei, ela que fizesse outros.
Nesta folia da praça ficou bem bebida, muitas vezes, mas num processo auto destrutivo. Na altura não conseguia mas, depois em privado, partia-lhe a cabeça, não a queria ver assim, eu própria estive assim tantas vezes, tantas coisas e pessoas que perdi a começar por mim.
Ela acalmou e na altura mais sofrível da minha vida esteve a meu lado, antes, durante e depois da morte do meu cão. Eu estava imbuída de amor, de amigos e comecei a fazer um trabalho sobre ele. Pedi para o filmar, a máquina dela dava para isso, ela negou de imediato mas insisti tanto tanto que, só para me calar, lá aceitou.
Registar as dezenas e dezenas de pessoas que, com gosto e amor, falaram sobre o meu cão, tocou-nos e uniu-nos como nunca. Eram tudo coisas bonitas, lindas, tínhamos de conter as lágrimas. Às vezes não conseguíamos e não nos importávamos. O cão era dos dois, de toda a gente.
Decidi fazer uma tatuagem com o nome Pirata, assim se chamava o rafeirito. No caminho começou a dizer entre palavras que era muito longo o trabalho, que tinha os seus projectos para levar adiante… Fiquei petrificada, pedi-lhe para acabar a primeira parte, pelo menos, ela continuou a desculpar-se.
Cheguei desolada à loja das tatoos mas depois de a fazer enchi-me de alegria, uma alegria tão grande que tive de sair, não fosse rebentar com as janelas enormes da loja. Dei pulos de alegria enquanto ela filmava pormenores. Quando saiu, saltei-lhe para o colo, é uma mulher robusta, abraçámo-nos e sim vamos continuar!
Decidiu entretanto ir viver para a Costa Alentejana, tive saudades instantâneas. Antes de se ir embora deixou uma singela exposição de retratos das pessoas da praça. É que, de vez enquando, até tirava umas fotografias giras.
“Tipa asneirenta, conseguiste fazer o que sempre sugeri. É muito mais interessante apanhar as pessoas com naturalidade, sem elas repararem, em vez dos retratos do olha aqui para a câmara. Muito bom.” Elogiei com genuídade e orgulho mas… “Eu não estou aqui, não puseste uma única fotografia minha!”
Com uma grande, grande lata e voz meiga, respondeu que fez o que lhe disse, apanhou o momento, as pessoas. Por isso, eu estava por aquela exposição toda.
Olhei para ela: “Sua grande cabra, com uma justificação inteligente tiraste-me da exposição”. Rimos e lá foi ela enfrentar a força do mar da Zambujeira.
A sacana gostava de apanhar (não é pescar) sargos à noite com uma lanterna que os atrai e depois, pimba, com uma pistola apanha os inocentes sargos. É altamente ilegal, um extermínio de sargos!!!
Acordei da intervenção cirúrgica, sentaram-me numa poltrona, bolachas Maria e chá. Eu que descansasse. Quero lá descansar! Quero é ir ler os plins!
Há três noites que a tipa asneirenta foi assassinar sargos e não voltou à hora do costume. Nem depois, nem depois do depois. Os amigos espalharam de imediato a palavra, todos os barcos da vila percorreram a orla marítima, em terra, uma imensidão de gente maior do que o mar palmilhou as praias. Sem pausas, sem parar.
A tipa asneirenta acabou por aparecer. Toda a gente contou a toda a gente o pouco que se sabia. Estava viva, estava cá! A solidariedade das centenas de pessoas que gostam dela rasgou o céu, tocou a lua.
A tipa asneirenta sobreviveu ao poder dantesco das ondas do mar, conseguiu escapar-se dos rochedos violentos, nadou com as poucas forças que tinha e, não, não morreu na praia.
No final desse dia fizemos uma pausa na partilha de informações, ela estava em boas mãos. Caí na cama, caiu-me o optimismo a que me agarrei e inventei. Chorei pela minha tipa asneirenta que irreversivelmente faz parte de mim. É um bocado de mim. A nossa amizade não se perde na distância, o amor corre quilómetros. Assim que puder vou à Zambujeira, tenho de ir. Preciso de abraçar a minha tipa asneirenta e dizer-lhe em repeat que a amo infinitos mil. Todos amamos.