Afundada no edredão, ele finalmente enrolado a mim, é que estivemos zangados durante dois dias. Não entrou sequer na sala no primeiro, no segundo deixei-o dormir no sofá.
Uma ferida na testa, outra mais pequena no rosto. Foi grave e gratuito, pura violência doméstica! Mas… pode ser fruto de algo que não está bem com ele, talvez precise de um psicólogo. Terei que o levar ao Sr. Dr. que não tem acordo com o SNS. Cobra mais por consulta do que o meu Sr. Dr mas o amor move montanhas e contas bancárias.
A reconciliação acaba por dar algum sentido às maldades, é a parte melhor, ou a única boa. Pois, o amor é lindo mas invocado para fazer mal, magoar, matar, para se poder afirmar “Tu é que me obrigas a fazer isto!”. Não penso que o amor justifique barbaridades mas acredito que esteja entrelaçado com o rancor, o ódio, a violência. O ciúme, que é uma doença, mistura-se com todos estes sentimentos. As situações, as pessoas, as circunstâncias, podem ser brancas e pretas ao mesmo tempo. Mas em nome do amor não se justifica a violência. Nunca, jamais!
Já amei e fui amada, muito mimada até. A alguns parti o coração sem querer, com outros saí estilhaçada em mil pedaços, sobrevivi com o coração colado a cuspo. Mesmo assim acredito que o amor é a única coisa que interessa, mesmo que as separações possam ser um alívio para uns, para outros tortuosas, complicadas, sofríveis, complexas. Como escreveu Saramago “Somos mata-borrões, somos impregnados pelo outro, deixamos de ser quem somos e passamos a ser nós com o outro; por isso é que nas separações o mais difícil não é um separar-se do outro, é a separação da terceira pessoa que ambos criaram”.
Largo os pensamentos filosóficos, envio-lhe uma mensagem, recebo a habitual pergunta: “Não sabes que dia é hoje?”. Ups, esta situação já é um clássico e engano-me sempre no número. “Parabéns, muitos parabéns!” Ela lá me perdoa o esquecimento de mais um aniversário deles. Um clássico, sem dúvida…
Viajo pelas fotografias: ela linda de morrer, novinha, novinha, ele não ficava atrás. Era um sedutor mas caiu de amores por ela que nem um patinho.
“Receba as flores que te dou, em cada flor um beijo meu”, uma das músicas que punha a tocar na jukebox do café com o seu maior sorriso, o seu mais doce olhar, a clássica cantiga do bandido. Consigo imaginá-lo, ainda hoje tem esse ar sedutor.
Só quando olho para as fotos é que consigo perceber que também eles foram jovens, silhuetas perfeitas, cheios de amor e paixão a pulsar entre eles. E foi assim que nasci. Sete anos depois de amor e paixão a pulsar nasceu o puto.
Lembro-me de me interrogar muitas vezes se as discussões eram consequências do amor. Foram muitas, mais do que uma vez pensei que mais valia estarem separados, que aquilo não fazia sentido. Depois lembro-me dos mimos que ele continua a dar-lhe, da força com que ela o leva, sempre levou. Como em qualquer lar que se preze, quem manda é ela mas fá-lo acreditar que é ele quem toma as decisões.
Construíram uma família literalmente do zero, sem a ajuda de ninguém, tinham-se apenas um ao outro, tiveram-nos a nós contra a contabilidade da vida. Deram saltos no escuro, caíram, levantaram-se, não deixaram que a vida lhes desse a volta. Foram eles que deram sempre a volta. Por cima.
As discussões desvaneceram-se há muito muito tempo, ficaram cingidas ao “Mas não íamos agora às compras? Essa história não é nada assim, eu é que a sei contar! Onde é que puseste o comando da tv, ainda não sabes qual é o lugar dele?Porque precisas de uma hora para sairmos de casa?” e vai por aí fora. É uma perda de tempo mas o tempo é deles.
“Prometo amar-te e respeitar-te na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, por todos os dias da minha vida”. Votos que viajaram pelo tempo, há mais de cinco décadas! São 18 615 dias juntos, por escolha, não por imposição sócio-cultural. Desconfio que vão continuar a viajar no tempo para sempre.
Aqui é o tempo de o meu companheiro pôr no portátil aquela música de que tanto gosto. Não se esquece de ligar a coluna de som. Olha-me com o seu maior sorriso, o seu mais doce olhar, a cantiga do bandido. Caio que nem uma patinha e, cega de amor, abro sempre uma lata de patê. Até que a morte nos separe.