BEIRA ALTA, MUROS DE PEDRA MIÚDA

Ninguém, por mais velho que seja, os viu construir.

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Vinham já do tempo dos seus avós, que desenharam com eles as paisagens antigas, cômoros de hortas e de vinhas, margens de caminhos, marcas de heranças a cada geração refeitas, terras divididas de centeio e pinheiral, linhas de fronteira tão sagradas como as linhas dos arados que, no Lácio, demarcavam o muralhado das cidades.

Muros velhos de granito campeiam por-aí-fora, por essa Beira serrana e descem, estes feitos de xisto, as encostas do Douro. Cada pedra, um gesto. Muitos gestos.

Carreavam-nas os lavradores dos sulcos que o arado abria, dos cortes que a enxada aprofundava. As maiores vinham da montanha, lanchas arrancadas com ferros e suor, pedraria grossa quebrada com guilhos, corsos penosamente arrastados por bois possantes, doridos da aguilhada e do mosquedo, ajudados pela palavra mansa e segura de seus donos. Eih, Amarelo!…

Mestre Pedro pedreiro, um qualquer, cantando às pedras, saberes antigos, a poética da sua canção iludindo a dor, os ferros aguçados na oficina do ferreiro, na aldeia, o som do martelo na bigorna, compassado, as chispas de luz, estes heróis que ficaram sem monumentos nos adros.

Sernancelhe. Carregal. Marco demarcatório da Universidade de Coimbra integrado num muro de pedra miúda.

Os muros ganharam a cor do tempo e uma inimaginável densidade de vida. Em alguns, os homens desenharam cruzes. Naqueles que bordejavam os caminhos, levantaram os pequenos altares que chamaram “Alminhas”, onde, às vezes, acendiam o azeite de uma lamparina.

Os pássaros faziam ninho nestes muros, todos os anos, os melros e os ferreiros, mesmo sabendo que a rapaziada da escola lhes poderia quebrar os ovos.

As lagartixas estendiam-se ali ao sol nas horas mortas, as raposas cavavam, a deslado, as suas tocas, mal sabendo que os caçadores ali armariam um dia as suas redes.

Agora que os campos de pão já se não estendem à montanha, agora que os caminhos velhos não têm mais romeiros, nem feirantes, nem almocreves, nem ceifeiros, nem vindimadores em regresso, agora que as silvas e as giestas invadem a paisagem despovoada, os muros de pedra miúda permanecem, quase só, como único sinal de uma história que nos vem do Neolítico. E nenhum de nós tem o direito de a apagar.

Sernancelhe. Freixinho. Cerca de Recolhimento de Santa Teresa de Jesus
 

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