Estarão os leitores recordados de que, em 14 de Fevereiro, se escreveu aqui – https://duaslinhas.pt/2025/02/a-pedra-misteriosa-em-na-sra-das-neves/ – acerca de uma pedra com misteriosa inscrição, de que Vítor Serrão tivera a generosidade de dar conhecimento. Está na sacristia da capela de Nª Sª das Neves, de Mata do Rei, freguesia de Alcanede, concelho de Santarém. Há mais notícias agora.
Importa, contudo, dizer, em primeiro lugar, quanto prezamos a partilha de conhecimentos, mesmo em termos de dúvida. Quando não se sabe, pergunta-se e, recebidas as respostas, delas, sem rebuço, se faz eco pleno.
Era estranho o letreiro, dado que se desconhecia o contexto original e porque, por outro lado, inscrição em quatro faces dum paralelepípedo pode induzir a leitura linha por linha nessas faces ou considerar válida cada face isoladamente. Além disso, desconhecendo-se o contexto e sendo a forma das letras passível de as atribuir a mais do que um século, a dificuldade era ainda maior. Em língua latina, partiu-se do princípio que deveria ser; por isso, não sendo da época romana, ou era do Renascimento ou do Neoclassicismo (século XIX).
Posta a questão nestes termos para debate público, é altura de se dar conta dos resultados obtidos, servindo-nos, para o efeito, da oportuna e ajustada síntese que Vítor Serrão publicou na edição de 7 de Março do jornal Correio do Ribatejo, sob o título de «Pedra com falares: a misteriosa peça epigráfica da Aldeia de Mata do Rei (Alcanede)».
Assim, cita Luís Duarte Melo, que , à luz do interesse demonstrado, no Renascimento, «por símbolos com significado esotérico ou religioso», interpretou o letreiro assim: AVDE VEVO CEDO CELO, que pode entender-se, adiantou, como OIÇAM QUE VIVO OCULTO NO CÉU, sendo esse um «sinal dos vínculos estabelecidos entre o falecido e a divindade».
Seria, desta sorte, adianta-se agora, uma versão em latim «popular»: aude estaria por «audi», do verbo audire, traduzível por «ouve!»; vevo seria «vivo», 1ª pessoa do presente do verbo «vivere», com o significado de ‘eu vivo’; celo estava pelo ablativo singular de caelum, com o significado de «no céu». Para cedo não se enxerga, de momento, palavra latina que possa corresponder-lhe, a não ser que se trate de forma sincopada de concedo, «concedo», «acredito». Duarte Melo atribuiu-lhe o significado de «oculto», mas não se vê donde poderá retirado essa conclusão.

Também não se compreende, à primeira vista, como pode depreender-se haver aqui um vínculo do falecido com a divindade (qual?), nomeadamente porque, aceitando-se a característica funerária do letreiro, o habitual é a interpelação do defunto a quem passa, interpelação bem conhecida, por exemplo, no dístico que encima a entrada da Capela dos Ossos na igreja de S. Francisco em Évora: «Nós, ossos que aqui estamos, pelos vossos esperamos»; ou, noutro singelo letreiro do antigo cemitério de Cascais: «Ó tu, que me vês aqui, / Assi feia com sobejo, / Vigia, olha por ti:/ Tu te vês qual eu me vi, / Ver-te-has qual eu me vejo».

Outra sequência de leitura sugerida seria AVDE CEDE VIVO CELO, ou seja, «Escuta, cede; vive no Céu», o que simbolizaria «uma espécie de profissão de fé cristã compatível com a sua presença num templo e numa função de testemunho funerário».
Acrescenta ainda Vítor Serrão que se poderia estar perante o que se chama um ‘memento mori’, ‘recordação da morte’, tipo de letreiro equiparável, portanto, aos dos dois exemplos agora referidos. Desta sorte, acrescentou, se justificaria «a presença relevada da cabeça, espécie de bucrânio (?) ou de figura alusiva ao defunto (?)» – a comparar, pode acrescentar-se, com a representação da caveira no monumento cascalense.
Após salientar a boa qualidade do texto epigráfico, a atestar «a importância conferida a esta peça da parte de quem a encomendou a um bom lapidário e a um competente calígrafo do século XVI (ou XVII)», dá conta Vítor Serrão de que Luís António Mata interpretou a legenda latina como um apelo à sabedoria da vivência cristã: “Dai ouvidos ao céu (AVDI VEVO CELO CEDE)”. Relaciona também o letreiro com a lenda da fundação duma capelinha em honra de Nossa Senhora das Neves, que, já no início do século XVII, deu lugar, no coração da aldeia, à actual igrejinha, «valorizada pela presença da imagem tardo-gótica da Senhora vinda da serra, pelo altar pétreo (datado de 1639) e pelo rico revestimento de azulejaria de padronagem seiscentista». Nada impediria, pois, conclui, que se tratasse da «base de um pequeno cruzeiro referenciando o sítio do achado da imagem mariana»; e, por isso, ainda que desta forma algo esotérica (digamos assim), aqui estaria consignada uma frase atribuível à Senhora cuja imagem de pedra, em mui remota era, um caçador topara no alto da serra: Escuta, vivo no Céu, rende-te.




O testemunho de Inês Martins Ferreira pode ser, igualmente, um contributo a valorizar:
«Assumindo audi como a primeira palavra teríamos: AVDI [VIVO] CEDE [CAELVM]. Os vocábulos vevo e celo podem ser um erro ortográfico ou uma deturpação medieval/moderna da 1ª pessoa do verbo vivo e do dativo de caelum. Audi pode ser um chamado para ouvir a palavra de Deus. Vivo pode referir-se à vida eterna, talvez nas palavras de Cristo “Porque eu vivo, vocês também viverão” (João 14: 19). Cede caelum pode ser interpretado como “cede o céu”, sugerindo entrega, renúncia ao mundo terreno ou aceitação da vontade divina. No contexto de uma igreja, poderia significar algo como “Escuta, eu estou vivo; entrega-te ao céu”, possivelmente evocando a ressurreição de Cristo ou um chamado à fé».
O mistério, portanto, permanece. A justificar – como Vítor Serrão sugeriu – a oportuna realização, em Alcanede, «de umas Jornadas de Trabalho que permitam atualizar saberes e promover discussões abertas; só se aprecia e conserva devidamente aquilo que é reconhecido».
Gostaria muito de poder contribuir para o debate desta questão tão interessante, mas de Epigrafia, de que tanto gosto, nada sei.
Afinal, as inscrições estão quase sempre em latim, este nem sequer da época romana, e de latim sempre fugi a sete pés, por ouvir em criança (nas Missas em que acompanhava alguém da família distante) uma lengalenga despachada à pressa que nem os santos entenderiam, quanto mais uma criança.
Assim, quando “devia” aprender a língua , já a tinha condenado. Também estava morta…dizia, para racionalizar tanta aversão injustificada.
Mas todas as achegas aqui referidas parecem muito corentes- Havendo fundamento na lenda da tal capelinha, nada mais natural que a inscrição configurar um apelo da parte de religiosos, para que as almas simples se aproximassem do céu.