O ESTADO E A LITURGIA CATÓLICA

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O governo decidiu adiar as celebrações oficiais do 51.º aniversário do 25 de Abril por causa do luto nacional decretado pela morte do Papa. À primeira vista, parece um gesto de respeito. Mas, na verdade, é uma decisão politicamente frágil e perigosamente simbólica, que deve preocupar todos os que prezam a liberdade e a laicidade do Estado.

Portugal é constitucionalmente um Estado laico. A religião – qualquer que seja – não pode moldar as decisões políticas do país. No entanto, ao dar prioridade à dor institucional de uma igreja, mesmo maioritária, sobre a celebração da democracia, o governo cede. E não cede apenas à Igreja. Cede também ao clima ultraconservador e revisionista que cresce à direita do espectro político.

O 25 de Abril, para muitos dos que hoje ocupam a extrema-direita parlamentar, não é uma data a celebrar, mas a relativizar. Há quem ainda fale da ditadura com saudade, quem negue os crimes do Estado Novo e quem prefira a ordem à liberdade. Ao enfraquecer simbolicamente o cinquentenário da Revolução, o governo abre espaço a essa narrativa.

Esta decisão seria impensável com um governo mais comprometido com os valores de Abril. Ao ceder ao peso simbólico da Igreja num momento como este, o governo transmite uma mensagem errada: a de que o pacto democrático pode ser posto entre parênteses quando interesses religiosos ou pressões conservadoras o exigem.

Portugal é, por definição constitucional, um Estado laico. O artigo 41.º da Constituição não deixa margem para dúvidas: o Estado não adota qualquer religião. No entanto, ao submeter as comemorações de um momento fundacional da democracia portuguesa ao calendário de luto de uma confissão religiosa, o governo quebra essa separação.

O 25 de Abril não é uma festa partidária, nem religiosa. É um marco civilizacional, um símbolo de liberdade, dignidade e cidadania. Cancelar as suas celebrações em nome da dor institucional por um líder religioso, por mais respeitado que seja, é inverter prioridades e fragilizar a memória coletiva.

O 25 de Abril não pertence à esquerda, mas foi a esquerda – em todas as suas formas – que sempre esteve na linha da frente da sua defesa. Não se trata de desrespeitar o Papa. Trata-se de respeitar o país. Respeitar os que fizeram Abril, muitos dos quais ateus, crentes, católicos, comunistas, anarquistas ou apenas gente farta da pobreza e de viver calada.

Se hoje é possível votar, protestar, escrever, discordar, é graças à Revolução. Por isso, deixemo-lo dito com clareza: a liberdade não se suspende. Nem por luto. Nem por medo. Respeitar os princípios do Estado de Direito Democrático que nasceu em 1974. A Revolução não pode ceder o seu lugar à liturgia.

2 COMENTÁRIOS

  1. Caro Carlos , só uma correcção,se me permite:
    O cinquentenário foi o ano passado , este é o 51°
    De resto , em absoluta concordância consigo !

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