Vi em Viena

CRÓNICA DE UMA VIAGEM

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O meu local favorito, que visitei com uns amigos, em Viena, em Áustria, não era especialmente visitável. Passámos por esse jardim, entre uma atração e outra, para comer umas sandes mistas em quaisquer bancos, entrando com uma energia dramática pelos antigos portões incólumes e abertos. A nossa postura era de uma perplexidade extrovertida, que poderia ser um exemplo daquela timidez instintiva de quem está algo perdido num sítio novo, mas tudo isto animado pelo à vontade do português feliz em viagem.

Deparámos com um pequeno lago com uma estátua centrada, apresentado por um homem que tocava violino. À sua frente, chegada logo sobre o alcatrão, a sua caixa do instrumento para todos os passageiros naquela paragem virtual. A tampa estava completamente retirada, mas raramente a caixa estava aberta o suficiente, pelo menos para os agachamentos que diminuíam a queda das moedas que o forro preto ainda amparava. Após caminhar muito antes de entrar nesse jardim, essa música, refrescantemente clássica, decidiu-nos, de súbito, trasladar as nossas pernas para os nossos ouvidos.

Enquanto comíamos as sandes, reparámos em nomes por todo o lado, em pequenas chapas. Estavam nos bancos de jardim, nas árvores…começámos a questionarmo-nos porque todas as coisas tinham um nome. Afinal, aqueles não eram só nomes de coisas, mas de pessoas falecidas. Cada coisa naquele jardim estava dedicada por pessoas a uma outra, sua querida, que tinha falecido. A árvore que estava atrás de nós, por exemplo, chamava-se Óscar, sim, mas foi chamada assim por dois pais que, em memória de um jovem que, com o mesmo nome, lamentavam não estar agora ao frio de pé. Comoveu-me muito aquilo.

Volksgarten (Jardim do Povo) em Viena de Áustria
Volksgarten (Jardim do Povo) em Viena de Áustria

Não sei se foi do fresquinho agressivo do queijo seco da sandes na minha boca. Não sei se foi a tentativa de reencarnar alguém numa coisa. Não sei se foi alguma farpa do miolo do pão que me escapou para a vista. Não sei se foi procurar homenagens mais originais, coisas mais representativas e dinâmicas que pudessem lembrar melhor que uma moldura a vida única de um que viveu. Não sei se foi uma ação para valorizar a identidade das coisas com identidades humanas, possivelmente perdidas. Uma forma de unir o mundo das coisas com o mundo dos seres vivos com o mundo do humano, mundos mortos e vivos, conscientes e inconscientes, numa teia que, universal, guarde um pouquinho de alguma coisa de cada um.

A igreja católica, por exemplo, lembra os mortos em lápides. Lembra os mortos através de sítios mortos, e, uma vez que lembrar é coisa da vida, deve-se usar vivacidades para lembrar, como os bancos de jardim e as árvores. Recordar através de um objeto é torná-lo o máximo semelhante ao próprio ato de recordar. Fazer-lhe uma estatua à medida. Materializá-lo como se não tivesse matéria, mas só a ele em si. E, como lembrar é referente a duas vidas: a passada e a atual, também um objeto batizado tem a sua própria existência presente, e a existência passada da entidade humana com que foi rotulado.

Não sou muito dado a crenças, nem a esta que, por ímpeto do momentâneo deste texto, me parece tão real e verdadeira. No entanto, sempre que assino um texto, é o meu nome que está numa coisa. Talvez já siga este ritual sem me dar conta…

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