Tresladaram-lhe o corpo para o Panteão Nacional e eu estou convicto de que, safado como era, o seu espírito, onde estiver, jamais também aí desistirá de brincar, como brincou durante toda a sua vida.
A crítica feroz
Os seus textos bem o apresentam como alguém que olha mui criticamente para a realidade que o envolve, designadamente a realidade social. O que as pessoas fazem, o que as leva a agir, as causas ocultas…

Um livro como A Relíquia poderá ser disso – como, aliás, os comentadores o terão dito muitas vezes – uma prova cabal, dessa sua atitude perante a sociedade, de algum distanciamento, sim, mas um distanciamento cáustico, até demolidor.
N’A Relíquia é a riqueza demasiada, a ambição, a hipocrisia. Fundamentalmente, a hipocrisia. E mesmo quando, consumado o desastre (da preciosa mala não salta a benta coroa de espinhos para a Titi, mas a camisa de noite da Mary amante) e a Consciência o quer chamar à realidade, o protagonista (o próprio Eça?) mantém-se na sua e desanca, a torto e a direito.
Os especialistas e quantos sobre a obra queirosiana se debruçam para a escalpelizar, tudo terão dito já acerca desse romance singular. Valerá, porventura, nesta circunstância, sublinhar dois aspectos.
Primeiro: é de génio, seguramente, esse seu subtil interromper da narrativa da viagem real, do século XIX, a fim de se transplantar, sentado (dir-se-ia) no tapete mágico da máquina do tempo, para a Jerusalém da prisão, julgamento e crucifixão de Cristo, fazendo reviver personagens e situações, envolvendo-as num dramatismo real.
O leitor pode ficar surpreendido, porque tudo se passa num ai. Escreve-se, a findar a narrativa, que
«Maria de Magdala, crente e apaixonada, irá gritar por Jerusalém: “Ressuscitou! Ressuscitou!”. E assim o amor de uma mulher muda a face do mundo e dá uma religião mais à humanidade».
E logo de seguida, sem pausas – «Já está!» –, vê-se o protagonista agarrado às crinas da égua, «tonto, como se rolasse entre nuvens» e corre às tendas:
«Sobre a mesa, a vela que Topsius acendera para se vestir, havia mil e oitocentos anos, morria num fogacho lívido… E derreado da infinita jornada atirei-me para o catre».

O domínio da linguagem
Para além da sabedoria deste entrecruzar cronológico, em mui apreciável realismo mágico, cativou-me o domínio da linguagem – e este é o segundo aspecto – patente, por exemplo, na enorme capacidade que o escritor tem de sugerir comparações, para que a sua prosa se torne muito mais esbelta e, de certo modo, mais apetecida. Comparações que, importa dizê-lo, reflectem soberanamente a sua minuciosa e vívida observação da realidade.
Vejam-se alguns exemplos esporadicamente colhidos:
– «E uma inquietação engolfou-se em minha alma como um vento triste numa ruína»: e o leitor na ruína se sente mergulhar…
– «Nas pontas dos galhos raras e ténues folhinhas, dum verde sem seiva, tremem e mal vivem como os sorrisos dum moribundo»: espantoso, o contraste!
– «Essa cinzenta cidade, que lá em baixo se agachava entre os seus muros fúnebres como viúva que não quer ser consolada»: tristeza infinda.

– «Torneei um rochedo que avançava soberbamente como a proa duma galera»: a força.
– «Resfolgando como um touro em Maio nas lezírias»: um traço ribatejano.
– «A sorte abandonava-ma indefesa, como a pombinha no ermo»: solidão.
– «As tabuinhas verdes descidas nas janelas como pálpebras pesadas de langor e de sono»: torpor.
– «Negrão curvou a cabeça, onde a coroa punha uma lividez azulada de lua em tempo de peste»: Negrão, o padre malquisto…
– «As suas pupilas faiscaram como as de um gato em Janeiro»: o brilho.
– «Trespassei-o com dois olhares mais agudos e faiscantes do que espetos em brasa»: fulminante!
– «E a Voz passou sobre mim cheia e rumorosa, como a rajada que curva os ciprestes»: era a Consciência!…
Salpicos, afinal, de muitas outras entrelaçáveis histórias – ora pejadas de humor, ora prenhes de um mui intenso viver – que, numa leitura de supetão, facilmente passarão despercebidas. E não merece que passem!