O escritor olhanense Júlio Conrado (1936/2022) viveu, desde os 3 anos, em Cascais e por aqui desenvolveu toda a sua actividade profissional.
Não admira, por isso, que tenha desempenhado larga acção cultural, quer como membro da redação do Jornal da Costa do Sol – onde, além de crónicas, dirigiu, na sua qualidade de crítico literário, a página literária «Texto e Diálogo» –, quer no âmbito da Fundação D. Luís I, onde orientou a edição da Boca do Inferno, «Revista de Cultura e Pensamento», criada por José Jorge Letria, de que, de 1996 a 2005, se publicaram 10 números.

Em 1995, a Editorial Notícias publicou, com o apoio da Câmara Municipal de Cascais, a sua antologia Lugares de Cascais na Literatura, um livro a que não terá sido dada a devida atenção, porque se atentou na palavra ‘antologia’ e não se reparou devidamente na apresentação que, sob o título «O espírito dos lugares» (p. 7-26), Júlio Conrado datara de «S. João do Estoril, 25 de Fevereiro de 1995».
Na verdade, essa apresentação reveste-se de grande interesse histórico-literário, porquanto Júlio Conrado aí analisa, em síntese, como é que a vila era vista pelos autores cujos textos reuniu, o que constitui eloquente amostra da ideia que, ao longo dos tempos, se teve acerca das suas gentes. Valerá a pena reler essas páginas. Anota, por exemplo, Júlio Conrado:
«O mito de uma ‘Linha’ frívola repercute, de maneira geral, na literatura daqueles que a tomam por palco onde se movem as suas personagens, quase sempre pertencentes à tribo invasora que com novos feitos lhe acrescenta a lenda pueril».
E, após aludir ao «sentimento de leveza desresponsabilizante que advém de comportamentos ‘romanescos’ em atmosfera descuidosa», observa que «abordagens literárias, de ‘dentro’ da realidade local são raras».
Cascais sob o olhar de Eça
Logo Júlio Conrado declarou não ter havido da sua parte a presunção de ser exaustivo, uma vez que, anuiu, «todas as antologias são incompletas» e que, portanto, «insuficiências e lacunas caberá aos vindouros remediá-las».
Essa não é a intenção agora, mas tão-simplesmente aproveitar para recordar duas referências que já tive oportunidade de mencionar na História e Geografia de Cascais (3ª edição, 1979, p. 19-20):
– a 1ª é de Gil Vicente que, na peça Cortes de Júpiter, ao dizer do acompanhamento que uma infanta terá, explicita: «E também até Cascais irão os vereadores». Por outro lado, na Farsa de Inês Pereira, Inês recusa um namorado e responde-lhe displicentemente: «Ide casar a Cascais!».
– a 2ª é de Damião de Góis, na sua Lisboa de Quinhentos (1554), a alusão ao vetusto farol da Guia: «À noite, acendem ali uns fachos para indicar o trajecto aos mareantes, não seja caso que estes, por não lobrigarem a paragem, arremessem, contra vontade, as naus para os baixios e rochedos». Mais adiante, continuando a descrição da costa, escreve Damião de Góis que se «dá com a fortaleza de Cascais, onde as naus de carga, ancoradas em porto amplo e seguro, esperam a maré e a monção», ou seja, o vento favorável para zarparem.
Acrescente-se agora uma passagem d’A Relíquia, de Eça de Queiroz, que patenteia, mais uma vez, a visão que os lisboetas tinham da vila cascalense na 2ª metade do século XIX, a partir do momento em que se iniciou o hábito de ir a banhos e Cascais – a par da Figueira da Foz – concitou atenções na época balnear.
Ora sucede que, ao descrever a nudez agreste das montanhas de Moab, que, segundo a tradição, haviam sido arrasadas devido a uma ira divina, Eça escreve:
«E compreende-se que pesa ainda sobre elas a cólera do Senhor, quando se considera que ali jazem há tantos séculos – sem uma recreável vila como Cascais; sem claras barracas de lona alinhadas à sua beira; sem regatas, sem pescas; sem que senhoras meigas e de galochas lhe recolham poeticamente as conchinhas na areia; sem que as alegrem, à hora das estrelas, as rabecas de uma assembleia toda festiva e com gás – ali mortas, enterradas entre duas serras como entre as cantarias de um túmulo».
A frivolidade a que Júlio Conrado teve ocasião de aludir. O panorama duma Cascais estival, plena de glamour, como hoje se diria…