Maria Keil, sensível e multifacetada “artista”, aceitou, um dia, o convite para ilustrar esse delicioso texto – prenda de avô à estremecida neta ainda tão infante, Mariana de nome, como a bisavó. O Livro de Marianinha lhe chamou o autor, Aquilino Ribeiro, quando o sol, em ocaso, lhe iluminava a tarde da vida, qual fronde ainda fecunda de castanheiro multissecular.
Aquilino não pôde já desdobrar com suas mãos, e comovido o faria, as páginas impressas deste livro belíssimo e singular, o outono quebrara-lhe a linha da vida antes que florescesse, no papel, esse primaveril roseiral, que Maria Keil oferece, mais tarde, com suprema comoção, à sua memória.

O Livro de Marianinha tem o jeito de um testamento, resumo de vida que mais se conta pelas linhas da obra de seu autor, amplíssima, a sua própria história nela recontada, conto de avós em primeira pessoa – Era uma vez!… “ A casa onde nasci, Marianinha”… – a vida desdobrada desde o berço, quando o mundo era ainda para ele como horto de Adão, um sol, criador, jeito de divindade benfazeja, governando os dias felizes das criaturas.
“PRIMAVERA” é o título com que Aquilino denomina a primeira parte do seu livro e nele desce à infância nessa pátria onde nasceu “no meio dos castanheiros”, diz ele, pátria de beatitude, harmonia plena com a terra, o chão onde viceja o centeal, onde o carvalho veste o “festo da colina”, onde os anhos pastam vigiados de pastor, onde canta o cuco e as mil aves irmãs, onde voejam libélulas e joaninhas, cantarolam grilos, percorrem seus carreiros as formigas, rolam, como Sísifo, suas bolas os besouros.
CÉU ABERTO, a segunda parte, não é tão poético. – Ouve, Marianinha!… São conselhos de avô, a menininha sentada sobre os joelhos.
Nem sempre a vida é como a gente quer. A vida é como um rio que navega até ao mar. Persistente, lá chega, a essa mãe de onde nasceu. Eterno retorno. Avô e neta.


Maria Keil entendeu como ninguém o mágico texto de Aquilino. E povoa-o de uma imagética poderosa, que é contrabalanço da escrita, o mesmo rigor, idêntica sedução, a simplicidade profunda de que são capazes os grandes que, na sua alma, guardam alma de meninos.
E lá temos, radioso, o mesmo sol das terras da Beira que enfeitiçou Aquilino, balãozinho dourado que uma criança governa, encargo de Mariana, talvez, e os bichos todos que povoaram o mundo até à crista das serranias que os olhos de infante abarcaram, terras de pão que a ilustradora soube guardar num cestinho, “bola centeia”, gulosa, quase cheirando ao lume do forno, e a “vaca da tia Maria Gaga”, magnífica interpretação dessa ruralidade de princípio de mundo, menininhas assustadas pelos gritos da dona, que a vaca só corre para dar de mamar ao vitelo, não tenham medo.
E o galaroz da tia Pascoela, Eva na terceira idade que já não conhecemos, e o burriquinho que ela conduz pela arreata, Portugal antigo passando – Bom dia, vizinha!… – talvez no regresso da feira.
E a Salta-Pocinhas fairando capoeiras, Serrobico em guarda, e uma página inteira cheia da chula, tão viva quanto ela, tão colorida quanto a blusa de chita das raparigas em quadra de arraial, o carreirinho das formigas e essa fabulosa página com o rapazio na procura lesta dos buraquinhos dos grilos na ervagem dos lameiros e o manso cuidado de dar-lhes morada numa caixinha, irmãos de que apenas queriam o canto sobre o anoitecer e para quem carreavam folhinhas tenras de alface ou miúda serradela do centeal de seus pais. Mestre besouro, tira-olhos, escaravelho, vaca-loira, lá andam, nas vivas cores de Maria Keil, no seu sugestivo desenho, o mundo todo dentro do coração, da “artista” e do autor.
E o vento que sopra, como ela tão bem o soube desenhar, que vai ser da menina de que a mãe olha a partida entre as ombreiras, que vai ser da cor alegre do lenço vermelho, das chinelinhas no pé, do pastorito da Nave que teima em habitar a serra, do Manel Chiné e do Zé da Cunha que “tinha uma irmã engraçadinha e louçã”, Maria Keil fez-lhe o retrato e quase apetece ser namorado da rapariguinha.
Camponeses vivem neste “Céu aberto”, são tal e qual como os que estão pintados no desenho, dobrados pela labuta, mal abrigados pelo burel da capucha, o ritmo do carro de bois do tempo do Rei Vamba conduzindo-lhes os passos.

Elucidativa essa página singular, o fantástico realismo dela, os meninos a cantarolar, como os grilos, a lição que irão aprender de cor, uma história de Portugal contada em pequeninos – “ Andando D. Afonso Henriques…”. Maria Keil e Aquilino Ribeiro deixavam, como o primeiro Rei, uma pátria ainda por construir.
Não importa. O Livro de Marianinha é para ser lido por todos nós. Está lá uma mensagem. Que não é para decorar mas para viver.