Como já aqui houve oportunidade de referir em O Safado, chegado a Jerusalém, Teodorico Raposo, o protagonista do romance A Relíquia, de Eça de Queiroz, retrocede de repente 1800 anos e passa a viver no tempo de Cristo, numa Judeia que o romancista não hesitou em povoar de ambientes e de pessoas contemporâneas dos dias da Paixão, nesse mundo cosmopolita em que se acotovelavam judeus e romanos, pois que o território fora transformado em província romana.
Não será, pois, estranho que eu me haja interessado, de modo especial, por aquelas passagens que poderiam denunciar os conhecimentos de Eça. Parte-se do princípio de que, se algo do que escreve deriva do que viu aquando por essas paragens andou, outra parte o terá colhido em livros e, por isso, desperta sempre curiosidade saber o que das ‘coisas’ da Antiguidade teria a tradição trazido a esses finais do século XIX.
Uma estalagem
Chamou-me, por exemplo, a atenção esta referência a uma estalagem:

“Compreendi que era uma antiga estalagem à beira de uma antiga estrada. Por baixo da cegonha, encimando a porta estreita e erriçada de pregos, brilhava em negro, numa lápide branca, a tabuleta latina – «Ad Gruem majorem»: e ao lado, enchendo parte da fachada, desenrolava-se uma inscrição rudemente entalhada na pedra, que eu decifrei a custo, e em que Apolo prometia a saúde ao hóspede, e Septimanus, o hospedeiro, lhe garantia risonha acolhida, o banho reparador, vinho forte da Campânia, frescos paletes de Engadi e «todas as comodidades à maneira de Roma»”.
Epigrafista, como me prezo de ser, interessou-me logo a história da inscrição. Se o Eça estaria dentro do assunto. E, confesso, surgiu-me logo a ideia de vir a tentar saber que tipo de inscrição poderia existir à entrada duma mansio ou duma statio, que eram os nomes dados às hospedarias (digamos assim) postadas ao longo das vias. A mansio – donde veio a palavra ‘mansão’ – era mais completa, passível de fornecer os cómodos que a pretensa inscrição ‘a custo’ decifrada por Teoodorico Raposo prometia: boa cama e boa mesa. A statio – donde veio a palavra ‘estação’ – era mais para muda de cavalos, paragem curta.
Certamente o estalajadeiro teria preferido invocar Mercúrio, o deus dos viajantes, protector contra os assaltantes de estrada. Apolo era, porém, o deus das Artes, da Poesia – e não ficaria também mal pedir a sua proteção.
O nome atribuído ao hospedeiro colheu-o, decerto, Eça na antiga tradição que faz remontar ao tempo dos Romanos a grande tradição gastronómica de Lyon, em França. Centro de numerosas regiões produtoras, nomeadamente de muito bons vinhos, a cidade poderia ter nascido em redor da estalagem dum cozinheiro famoso, que dava precisamente pelo nome de Septimanus. Eça deve ter lido algo a esse respeito. Já próximo de nós, essa ‘memória’ de Septimanus viria a ser retomada por Félix Benoit, no seu livro Lyon Secret (2004, p. 84), uma obra onde a história se casa com a fantasia ou não fora o seu autor dotado de excentricidade, pois – escritor, humorista e crítico gastronómico – criou a Ordem do Prego e o Grande Colégio da Patafísica («doutrina paródica que se propõe a examinar fenómenos imaginários»).
Sucede, porém, que tem essa tradição um fundamento histórico irrecusável, que inclusive explica os dizeres pensados por Eça para a placa de boas vindas na estalagem do cozinheiro de Jerusalém.
Ora leia-se o que está numa inscrição romana autêntica, em verso, datável do século II da nossa era e que, encontrada em Lyon, se conhece desde o século XVII. Dá-se a tradução do latim para português:
Mercúrio aqui lucro promete. Apolo, a saúde. Septumano, a hospedagem com refeição. Quem vier melhor ficará depois. Olá, hóspede! Onde estiveres, experimenta!
Que se poderia querer de melhor? A placa epigrafada, destinada a figurar no lintel da porta de entrada da estalagem (do xenodóquio, para usarmos um termo erudito…) e que, pela sua singularidade, decerto rapidamente foi conhecida! Porventura dela soube Eça de Queiroz através de eventual leitura de obras – como «A História da Cidade de Lyon», de Jean-Baptiste Monfalcon, publicada em 1847 – em que lhe foi feita referência.


Seja, pois, esta mais uma achega para melhor se ajuizar da erudição de Eça e do modo sábio como adapta às suas histórias os dados que vai colhendo.
De: Cecília Travanca
28 de fevereiro de 2025 11:14
Bom dia caro amigo
Como da ficção/ realidade se faz um magnífico texto. Como diz o outro “ encheu- me as medidas”.
Muito gostei, do erudito relato de ambos, de Eça e do Professor José d`Encarnação.
Que texto mais interessante!
Há quanto tempo não pegava em A Relíquia, de Eça de Queirós, julgando de nada me lembrar, mas a memória deve ser um novelo que é preciso ir desfiando até pararmos em nós salientes que anunciam as estações onde queremos descer.
Primeiro o safado do Teodorico, a estação mais representativa por ser o protagonista, desculpado por ter crescido com algumas carências morais de certos órfãos. Depois a viagem à Terra Santa e suas procuras e achados…E finalmente essa referência a uma estalagem com uma inscrição que um grande epigrafista não deixaria de aproveitar e em que uma curiosa, à boleia, veria também algum interesse, mas de outra natureza.
Porque fala numa palavra que me deixou vontade de voltar ao deserto e visitar um pontinho nesse mapa: En (Ein) Gedi, ou Gadi, esse lugar dos tempos bíblicos onde dizem que se escondeu João Baptista.
Por causa de um romance que tive de escrever e pouco vendeu (tem o tamanho de uma bíblia, não me surpreendeu nada) fiquei fascinada com as grutas de Qumran, depois da leitura de Os Manuscritos do Mar Morto.
Fiz a viagem a Israel e Jordânia…Petra estava no itinerário e foi visitada, mas o minúsculo oásis de En Gedi/Ein Gadi/ Engedi que significa salto do cabrito, ou de forma mais litúrgica, “brincadeira de criança” que salta como os cabritos, ficou em falta…sinto-lhe a falta. E estive em Masada, ali tão perto.
Em boa hora vejo este texto e agradeço por ele, embora me tenha afastado um bocadinho.
Muito grata.
Bem hajas, mui querida Helena, por estas oportunas achegas da tua vida pessoal. Quando uma crónica suscita emoções e proporciona viagens no tempo pode, de facto, o cronista sentir-se realizado. Um beijo.
José Azevedo Silva
28 de fevereiro de 2025 19:18
Ora aí está! A epigrafia em A Relíquia, de Eça de Queiroz!
Quem diria…
Vai para dois séculos que A Relíquia andou por aí com São Custódio, até encontrar o seu relícário no oratório do hiper-epigrafista José d’Encarnação.
maria helena coelho
28 de fevereiro de 2025 17:54
Muito obrigada pela partilha de mais esta descoberta sobre a erudição de Eça.
José Bicho
28 de fevereiro de 2025 13:24
Li o texto enquanto almoçava em Lisboa onde me desloquei por motivos profissionais. Movido pela memória e alguma nostalgia procurei um local onde outrora a arte de bem cozinhar e receber eram ponto de honra dos seus antigos donos. Julguei que entrava em uma mansion, era assim que a recordava, e logo me apercebi que afinal era uma statio. O lema aqui é “Quem vier pior ficará depois”. Pago 28€ e saio com a ideia que o estalajadeiro pertence à Grande Ordem da Patafísica. Espero que o Eça tenha tido melhor sorte.
António Campar
28 de fevereiro de 2025 12:59
Sempre a ensinar…
Resposta do cronista: E que honra ter um ‘aluno’ atento!…
Teresa Mascarenhas
Como é bom aprender contigo.
Adorei aquela dos deuses e da estalagem. Quem sabe, sabe.