Entramos. Somos atacados por um batuque constante, vigoroso, a ritmo superior a um segundo, batimento cardíaco acelerado. No ângulo esquerdo da cena, do lado de fora do pano, nutrido guarda-roupa. Saberemos depois que simboliza a extravagância, a excentricidade, a mundanidade, o reino das aparências. E, à direita, o busto de Perón em esferovite: o Poder. Um poder estático, insensível aos clamores do Povo e mesmo da própria família, esfíngico.
A peça Eva Perón, do escritor argentino Copi (nome artístico de Raul Damonte Botana – 1939/1987), em cena no Mirita Casimiro desde o dia 21, insere-se, na sua plenitude, no que foi sempre a linha de atuação desta companhia: considerar-se experimental. Ou, como escreve Fernando Alvarez, assim se «dá continuidade a uma linha do teatro cerimonial, absurdo, complexo, que nos leva a questionar o Poder, o Teatro, a Sexualidade, a Morte e o Mito. Uma das muitas linhas de reflexão que o Carlos Avilez nos deixou como legado».
Tudo aí, de facto, é posto em causa, na salutar necessidade de a existência de cada um de nós ser vivida consciente e não passivamente, ao Deus dará.

Rodrigo Aleixo aceitou o desafio de tratar da encenação: «Eva Perón fala-nos entre muitas coisas, de mito, rasgo, o culto da imagem, o apego e o desapego, e de luta. A luta que muitos vivem nos dias de hoje», escreve.
A banda sonora é original de Paulo Furtado, que diz ter sido para ele um enorme desafio, porque sentiu «a necessidade de traduzir musicalmente o exagero, a ironia e o dramatismo que atravessam o texto, explorando um universo sonoro que dialogasse com a ambiguidade e a irreverência da obra».
Encarregou-se Fernando Alvarez, como é hábito, da cenografia (nua, como convém), dos figurinos (um primor de extravagância!), dos adereços (mais extravagância!), enfim, da produção.
A versão e a dramaturgia – o reino habitual da grande experiência de Miguel Graça.

Dizer que FF desempenha de forma excepcional – porventura a merecer o prémio de «melhor actor de 2025» – é reduzir a apreciação a uma frase estereotipada e, por isso, quase desprovida de significado. É que, na verdade, não há palavras para classificar a sua actuação. Aqui pode aplicar-se, com inteira razão, aquele dito popular: «Só visto, que contado ninguém acredita!». Conhecemos FF como intérprete musical («ele canta tudo com raro virtuosismo», pode afirmar-se sem medo de errar); conhecemo-lo como criador de personagens nas peças de Filipe La Féria; aqui, porém, neste seu regresso ao Teatro Experimental de Cascais, ultrapassou-se, no domínio da expressão corporal e, de modo particular, no domínio da voz. Nada fácil, entendamo-nos, incarnar uma Eva Perón no estertor de quem pensa que vai morrer de seguida e quer aproveitar os últimos momentos para dar largas às suas mais mórbidas elucubrações.
Está muito bem acompanhado pelo veterano João Lagarto, a criar uma mãe velha, com todos os tiques dos velhos que como velhos se não capacitam de que o são. Criação excepcional também esta, no gesto trémulo, no andar desajeitado e, sobretudo, na voz ciciada. Perdoe-me João Lagarto se lhe digo que me fez lembrar um outro João, o Vasco, na que foi igualmente, em 1991-1992, a portentosa criação de uma velha em La Nonna, de Roberto Cosa. La Nonna queria era comer; aqui, a mãe tem outro apetite: a herança, chave do(s) cofre(s) na Suíça.
Vão, naturalmente, muito bem os outros intervenientes: Rodrigo Tomás, em Ibiza; João Nunes Monteiro, a corporizar uma enfermeira que acaba por ser a sacrificada total, por representar a ordem; Sérgio Silva («Fanny»), Tomás Garcez («Juanita»); Afonso Jerónimo, a desdobrar-se em criado e «a outra».
Recorde-se que o espectáculo foi pensado em clave de estética camp, uma estética da subversão. Valerá, por isso, a pena ler, não apenas o que, nos textos de apoio, se explana acerca dessa ideologia, teorizada pela nova-iorquina Susan Sontag (1933-2004), mas algo mais, a fim de melhor se entenderem atitudes e posições estético-ideológicas dos últimos tempos.
Aliás, são mesmo para ler os oportunos textos de apoio que foram reunidos na pasta disponível para os espectadores. Para ler e para guardar.

Em suma, esta Eva Perón constitui uma peça forte, incómoda, como se preconiza na referida estética camp: importa tudo subverter, em todos os aspectos, nomeadamente no modo de vestir, na fala, no gesto. Para maior consciencialização, dir-se-á, do que significa viver em plenitude, sem dar a mínima margem a um qualquer displicente deixa-andar.

Para ver, no Mirita Casimiro, até 27 de Março, da 4ª a sábado a partir das 21 horas, do domingo, a partir das 16. É a 184ª produção do Teatro Experimental de Cascais.
Boa tarde José d’ Encarnação, muito grata pelo detalhe deste texto relacionado com a nova peça do TEC que desejo muito ver.
Fiquei mais impressionada pelo facto de haver um ponto de partida, ou elemento inspirador, na teatralidade da “estética camp”, que não conheço assim tão bem, mas gostaria de cnhecer melhor nesta abordagem, por exemplo, e nos trabalhos de Susan Sontag de quem li alguma coisa.
Vou a contar com arrojo e modernidade, os mesmos que ela demonstrou ao assumir a sua bissexualidade e adesão a várias frentes de activismo num tempo em que as mulheres pouco o faziam.
Talvez o facto de ter vivido com Herbert Marcuse também me tenha levado a lê-la e a segui-la com admiração.
São grandes as expectativas, conforme avalio pelo texto, pelas imagens, pelos nomes dos responsáveis pela encenação, adaptação, guarda-roupa, actores.
Até 27 de Março?
Espero ter incentivos para ir ver todas as peças do TEC.
Muito grata por tanta informação.
Beijinho.