A Freira no Subterrâneo

De novo me quis fazer acompanhar de Camilo Castelo Branco para a pausa natalícia. Aleatoriamente, retirei da estante dos livros de bolso um que ainda não lera: A Freira no Subterrâneo.

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Confesso: nunca me soara este título, não tinha a menor ideia da história. Vagamente, soara-me a toada anticlerical, inserida no espírito que motivara a abolição das ordens religiosas em 1834. Deliciar-me-ia sobretudo com a pureza da linguagem, aprenderia uma série de termos novos (aprendi: ferragoulo, muladar, sopitamento, avelhado, aissauá, almadraque, retranzir, almargeal, por exemplo…) e ficaria, decerto, mais culto.

Fiquei.

Acontece, porém, que a primeira surpresa consistiu em saber que não se tratava de original camiliano mas da tradução do romance de autor francês incógnito (1871) e a acção se passava em Cracóvia, capital duma Polónia então sob a ameaça imperialista da Rússia sem saber para que lado deveria pender.

Um fundo político, portanto. O herói, «fogoso defensor da liberdade polaca», a ser preso e, pelo meio, o amor impossível – que nobre deve desposar segundo os paternais interesses e não segundo o que lhe pede o coração. Conclusão: Bárbara Ubryk entra para as Carmelitas, onde, vítima da sua excepcional beleza, sofre os horrores da perseguição da abadessa, torturas cuja miúda descrição deixa de longe suplícios perpetrados pela Inquisição e muito se aproximam, aliás, dos que vamos conhecendo acerca dos maquinados pelas ditaduras actuais.

Quanto se sabe, a história é verídica e daí o autor se haver refugiado no anonimato, com medo das naturais represálias. De resto, se se pesquisar ‘Bárbara Ubryk’ na Internet, encontrar-se-ão as múltiplas versões do romance, embora, se não erro, nessa série, a de Camilo haja passado despercebida.

Saliente-se a natural beleza da prosa camiliana. Decerto, muito é dele e não do autor original. Camilo não se deve ter privado de burilar a frase a seu bel-prazer:  

«Pensativa, a condessa afagava os cabelos doirados da filha, perplexa entre perturbar aquele coração infantil ou revoltar o coração da mulher».

Esta obra já foi, sem dúvida, mil vezes comentada, de todos os pontos de vista, acentuando o encanto da descrição da mulher, a força da paixão, e verberando o ambiente irreal dum convento. Surpresa foi para mim uma proposta que não deixa de ser significativa na época em que foi escrita:

«Os salmos de David, se os considerarmos clamores humanos, lástimas de poeta, cânticos doloridos e lacrimantes, são admiráveis.  […] Como quer que seja, as poesias do poeta rei devem ser lidas, pensadas e admiradas como se admiram todos os poemas notáveis. Somos, porém de parecer que a igreja católica deveria expurgar essas fezes de judaísmo e recompor orações harmónicas e congruentes com o culto que derruiu completamente o dos hebreus. Não é irracional coisa que os israelitas e católicos salmodiem os mesmos versículos? […] Deixai que os salmos de David se leiam como poemas, mas expurgai-os das orações cristãs. Os pesares das multidões não se acham bem exprimidos nos clamores do assassino de Urias e do amante de Betsabé. […] Em resumo: quiséramos que os padres católicos se servissem das orações católicas».

            E conclui:

«Mas enquanto esta lógica não entrar na cristandade, invocaremos com David a cólera celeste sobre os transviados, como se Cristo não houvesse dito: “Vai mais alegria no céu pela conversão dum pecador que pela perseverança de noventa e nove justos”».

Enfim, lamenta: «converteram dogmas de ternura em religião de pavores».

Se tais reflexões nascem do tradutor ou do original é questão que importará a quem pretender realizar um estudo mais fundo sobre o seu significado e, até, sobre a razão que terá levado Camilo a lançar-se nesta tradução. Uma coisa é certa, porém, atendendo à quantidade de edições deste romance dito ‘histórico’ nas mais diversas línguas: o drama de Bárbara Ubryk, também já passado a cinema e imortalizado em quadros a representar os momentos mais tocantes da narrativa, atingiu mui alargada dimensão. Dado o seu tema e por ser uma tradução, poderá ter passado quase despercebido entre nós; todavia, vale a pena analisá-lo também como documento histórico duma época e duma mentalidade.

2 COMENTÁRIOS

  1. Muito grata por este texto, José d’Encarnação, ou por toda a informação que ele nos transmite e incita a procurar.
    Traduzido por Camilo, tinha de confundir-se com o seu estilo primoroso. E como um bom tradutor, que fica atraído pela obra anónima, a tradução confunde-se com a autoria, ou é outra espécie de autoria.
    É o próprio Camilo quem no-lo diz em “Nota do Traductor” da edição de 1872 , creio que guardada na Biblioteca da Universidade de Minnesota, que fora atraído por notícias de jornais franceses poucos anos antes chegadas a Portugal.
    Parecia-lhe que as notícias da moça enclausurada nas masmorras de um Convento Carmelita por ordem do pai, eram verdadeiras. Afinal não eram desmentidas por nomes importantes da época.
    E havia tantos segredos e omissões que ele, enquanto prolífico autor, não encontrava melhores ingredientes para, sob a forma de tradução, escrever um quase romance com a sua marca,

    Eu não conhecia. Só tinha usado já alguns termos em romances sobre figuras da Idade Média, termos esses que me parecem de etimologia árabe (almadraque= grande almofada ou colchão e almargeal=terreno de almargens, pastagens), mas como é evidente senti imediata curiosidade por ir procurar mais (posso estar enganada em alguma coisa) e ler.
    Uma tarde muito tranquila, sob o manto cinza molhado.
    Bem hajas.

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