Era já tarde quando chegavam.
Tinha eu acabado de levantar a mesa e preparava-me para repousar uns minutos.
A D. Maria Augusta trazia um ramo de amores-perfeitos e outro de violetas, as minhas flores preferidas. Em que recanto do jardim as guardara, se o tempo nem estava de feição?
O Sr. Inácio pousava ali mesmo o açafate de vime com produtos da horta pontilhados de gotas de chuva, com uma abóbora-menina bem no centro.
Não se esqueciam de mim.
A minha avó ficava na cadeira em frente, silenciosa como no seu “convento”, com a enorme caneca de chá aconchegada nas mãos. Não era chá de limão, era de folhas de limoeiro. Escolhidas, lavadas, tirado o veio do centro, faziam o melhor chá que lhe podiam oferecer.
Bolos não…pão caseiro com uma fatia de queijo, qualquer um. Ia buscar?…
Acenava-me que não. Bebia um trago pequenino do líquido quase fervente. O fumo levava o aroma pelos cantos da sala. Os anos corriam em sentido inverso até às casas geminadas que eu visitava na infância e adolescência.
Alguma recriminação? Afinal esquecera-me de lhe deixar o lugar vago com a sua louça, lugar sempre suspenso das franjas da minha saudade.
Sorria-me sem viço, mas sorria. E adivinhando as perguntas envoltas numa cortina de lágrimas, respondia-me naquele tom natural com que sempre contornava as arestas da vida:
É Natal…Passei por aqui e lembrei-me de subir.
Ainda nem eram sete horas… Acordava do meu sonho em sobressalto e ia planear a jornada diante de uma chávena de chá.
Escrevi este texto certo dia para publicar no FB. As redes sociais recebem, no meio do lixo, fragmentos de memórias que ainda podemos afagar, ao mesmo tempo que a desolação se espalha pelos vários cantos do mundo sem podermos afagar quem sofre…Não sei se elas ficam resguardadas das intempéries. Há quem ouse cobiçar pedaços de lembranças alheias, até daquelas que sempre serão nossas, tão íntimas como um acto de amor.
Partilhei o texto este Natal com todos os que estavam, em memória dos que foram seguindo caminhos diversos para o mesmo destino e se impunham ali como se nunca tivessem partido. Não havia mais lugares à mesa, só no meu coração farto de repetir rituais que já nada me dizem. Tão manchados de pérfidos apelos à violência, a guerras várias, ao consumo desenfreado, não matam a fome que vão presenciando, nem poupam a vida aos que um dia farão falta ao mundo alargado, como fazem agora ao mundo restrito do amor familiar.
Têm um mérito, estas dissemelhanças do conceito de Consoada: avivar os contornos da memória e o que, na pouca abastança, as pessoas faziam lá muito atrás umas pelas outras, depois de terem aprendido a desolação de uma Guerra que se julgava a última.
Uma das minhas tias tinha negócios vários. O marido geria uma tabacaria e cuidava dos afazeres de Presidente da Junta. Num caderno grande apontavam os nomes dos clientes que pagavam ao fim do mês, quando num caso vinham reabastecer-se de géneros, ou no outro de material escolar. No mais pequenino, escondido nas gavetas do constrangimento, escreviam os nomes dos que nunca pagavam, mas a quem sempre atendiam.
Lá em casa havia uma legião de trabalhadoras e dois empregados internos. Além deles ainda chegavam raparigas de treze, catorze anos, para “servir” em troca de comida, deixadas pelos pais sem mágoa aparente, num discurso duro que lhes sugeriam “obediência aos benfeitores”…
Sempre da “serra”, dizia a minha tia para designar regiões ermas onde as famílias não conseguiam matar a fome à legião de filhos. Quando as moças chegavam aos 18 anos mais compostas, casavam com um rapaz “de bem”, reproduzindo os termos das serventes e da sogra da minha tia, a senhora que governava a casa e distribuía sorrisos.
No meu presépio hava sempre um casal de burros com importância (quase) maior do que as outras personagens, um tributo às mulheres esfíngicas de saia rodada, que andavam quilómetros desde os pinhais à volta da Figueira da Foz até Coimbra, tangendo jericos magros carregados com dois cestos de míscaros, um de cada lado da barriga do animal.
Limpá-los de areias para fazer um cozinhado, nem pensar. Quem podia tinha o tradicional e não comprava um quilo sequer dos cogumelos selvagens. Mas havia necessidades, como bem sabiam as mulheres que trabalhavam lá em casa e as que se curvavam para apanhar o unico bem com que podiam lucrar.
Na véspera de Natal fechavam-se as portas do comércio, mas nunca a porta de casa, nem a da Junta de Freguesia. Não havia turbulência nas ruas, só conflitos domésticos. Era preciso fazer respeitar as tréguas do período religioso e matar a fome a quem viesse de perto ou de longe, para práticar o apoio social aos mais carenciados.
O fogão a lenha da Casa Velha, e o outro mais recente na parte nova, enchiam o ar de aromas inesquecíveis, depois de as mulheres afadigadas serenarem um pouco. A mesa da sala mais antiga, com cozinha de fumeiro e quartos dos empregados, enchia-se das melhores iguarias. Mas o sol não declinava sem a tarefa de limparem os míscaros que a minha tia comprava todos às mulheres que tangiam os jericos. Havia santas que não estavam nas igrejas, diziam a regalar-se com uma sanduíche de carne assada e um copo de café com leite para não irem de estômago vazio.
Antes da ceia em minha casa eu tinha de bisbilhotar aquela mesa grande, petiscar um pastel de massa tenra, um rissol de camarão, outra gulodice salgada que ninguém sabia fazer melhor do que cozinheira orientada pela D. Sofia. Foi com essa mesa que sonhei Consoadas semelhantes quando crescesse, mas nunca consegui reunir tanta gente, nem replicar tanta delícia. Depois ia ver as mulheres a cozinharem os cogumelos com um colar de dentes de alho para controlo da qualidade, ou para evitar o veneno de algum tortulho. A última tarefa antes de partirem, carregadas com outros géneros, era a divisão em porções iguais para cada uma, para irem celebrar o Natal com as famílias.
Aquela casa era uma escola de virtudes. Nem os meus tios, nem a D. Sofia se zangavam com ninguém. A última menina que veio da “serra” e casou aos 17 anos, deixava para trás um prejuízo considerável em louça. Em quatro anos todos os dias tinha o mérito de partir um prato, ao limpá-los. A seguir à gargalhada geral, dizia D. Sofia com um humor refinado:
deixa lá, não te magoaste…desta vez foi só uma travessa da Vista Alegre.
Foi destes natais que retirei uma pitada de alegria, um pau de canela, aromas de limão e lúcia-lima para construir a minha Consoada, mas ela continuou vazia de sentido e de profundidade, porque foi a mim que faltou a centelha de alegria que anima qualquer festividade. Consegui iludir o tempo que ofereci, mas não iludir-me de que é preciso esquecer o que não vale a pena e reinventar o essencial. Em quatro palavrinhas: mudar o mundo todo.
Uma delícia de escrita a contar deliciosos natais!
Que bom!