Durante o meu tempo de estudante em Lisboa tive a oportunidade de conversar e debater sobre o livro As Lutas de Classes em Portugal nos Fins da Idade Média, da Editorial Caminho, com o seu autor, Álvaro Cunhal. Escreveu-o no segundo semestre de 1950.
Este encontro surgiu pela mão do querido amigo Dr. Paulo Sucena na sequência de um pedido de sugestão de análise para a cadeira Sociologia e Economia Históricas. Propôs-me estudar o livro e, no final, entregar o trabalho ao autor e “reflectirmos em comum”.
A idade avançada do Dr. Álvaro Cunhal e as suas dificuldades visuais obrigaram a que cada uma das folhas A4 fosse ampliada para A3 para lhe facilitar a leitura.
Nessa tarde de final de Março de 1999 fui recebido no nº 3 da Rua Soeiro Pereira Gomes. Aguardei alguns minutos e fui encaminhado para uma das salas existentes no rés do chão.
Há toda uma preparação para aquele momento mas o confronto com a realidade surpreende inevitavelmente. A presença de História viva, de um escritor, de um pintor, de um político controverso, convocou o meu melhor para estar à altura dos acontecimentos.
Um homem calmo, sagaz, numa conversa longa com várias horas, com lanche pelo meio que me permitiu responder a algumas dúvidas suscitadas. Pela minha parte não resisti a perguntar sobre alguns momentos da sua vida, as suas opções e como, à data, olhava para Portugal.
Transmitiu-me uma ideia de confiança quase incondicional na juventude e nas suas capacidades, de lutar por um mundo melhor, de criar, de ser útil. A juventude renova a esperança.

O livro aborda a crise, a revolução de 1383-1385, uma revolução burguesa.
Aquilo que fascina no livro, que surpreende verdadeiramente, e que confirmei com o autor é o reconhecimento das forças do progresso, na burguesia.
Segundo o autor, é, naquele contexto histórico, a primeira revolução verdadeiramente progressista. Ainda hoje esta frase me acompanha.
Com a revolução, os burgueses partilharam momentaneamente do Poder. Mas, nem ganharam a hegemonia política, nem ascenderam a classe dominante.
As lutas e vitórias burguesas foram então lutas e vitórias progressistas. As vitórias aristocráticas, vitórias da reacção.
A nobreza representa as forças do passado, a burguesia o futuro. (pp. 168).
Este livro é também revolucionário pela forma como descontrói a ideia de que foi em 1917 que a luta de classes se apresentou ao mundo. O autor diz-nos que foi em Portugal no final do séc. XIV.
Na própria vida intelectual, é o pensamento da burguesia historicamente ascendente que predomina e inspira, dando origem às mais notáveis obras de arte. Fernão Lopes na literatura, Afonso Domingues na arquitectura, Nuno Gonçalves e Vasco Fernandes na pintura, são expoentes da ideologia burguesa numa época histórica em que a burguesia desempenhou papel progressista e revolucionário. (pp. 168).
Nos campos, a burguesia começava lutando contra as limitações impostas pelas relações feudais ao progresso da agricultura. Começava lutando contra a existência de grandes extensões incultas, de terras ricas votadas a pastagens ou a montanhas. Começava lutando para a substituição da pequena produção pela exploração à base de trabalho assalariado. (pp. 168).
À burguesia se deve toda essa luta gigantesca, persistente e metódica, que culminou com a descoberta do caminho marítimo para a Índia. E talvez também a ela se deva não ter a bandeira portuguesa flutuado nos navios de Colombo e de Fernão de Magalhães. (pp. 170).