A tradição do bolo-rei não vai, em Portugal, além de finais do século XIX. E – ao contrário do que se passa com a nossa privilegiada doçaria de origem conventual cujo aparecimento não tem ajustada sinalização – este requintado manjar doce da tradição natalícia e de invenção antiga deixou marcas no caminho que o trouxe até aos nossos dias.
Inventado em França nas cozinhas de Luís XIV, o Rei-Sol, cujo longo reinado se estendeu de 1643 até 1715, ano da sua morte, ali recebeu a clássica designação de Gâteau des rois (bolo de reis), inicialmente para consumo da Corte, por ocasião da festa cristã da Epifania, mais conhecida por Dia de Reis.
Depressa ganhou foros de iguaria popular com essa outra designação de Galette des rois que, de tão fortemente implantada no comércio local, resistiria às invectivas dos revolucionários de 1789, que apenas conseguem mudar-lhe o nome para Gâteau des Sans culottes e outros nomes que depressa serão esquecidos, em favor do antigo nome que não transgrediria, jamais, as conquistas da Revolução.
No extenso território da França, o bolo-rei terá tido variantes locais, a julgar pela representação que dele se desenha num belíssimo quadro pintado em 1774 por Jean-Baptiste Greuse com o título Gâteau des Rois, que hoje se encontra em Montpellier, no Museu Fabre, com referentes do Norte de França.
Aqui, nesta mesa de uma família de camponeses abonados, vestidos com trajes festivos para a celebração da festa da Epifania ou Noite dos Reis, um pai de família distribui as fatias de um característico bolo de massa folhada de que se reservara a pequena parte deixada na bandeja, sobre a mesa, dita a “parte do pobre” que poderia, nessa noite, bater à porta.
O bolo-rei, tal como o conhecíamos há anos, com formato de coroa, que mantém, decorado com frutas cristalizadas e contendo uma fava e um brinde, originário da região parisiense, foi introduzido em Portugal nos anos de 1869-1870.
E tal se deve a Baltazar Rodrigues Castanheiro Júnior, herdeiro da Confeitaria Nacional de Lisboa, que, por ocasião de uma sua visita a Paris, ali recruta o célebre confeiteiro Gregoire, aportuguesado para Gregório, que ali inicia o seu fabrico.
Instaurada a República, sofrerá, como na França revolucionária, a tentação proibitiva; mas aqui, como lá, tendo ganhado fortuna, apenas muda de nome, por algum tempo, para “bolo nacional” ou “bolo Arriaga” e outros nomes depressa esquecidos.
Estendeu-se, mais tarde, ao país, primeiramente às cidades, levando tempo a chegar às aldeias do interior da Beira, por exemplo, o que acontece apenas na segunda metade do século XX, onde, na sua feição clássica, o formato de coroa, a massa lêveda semeada de frutos secos, ornada com frutas cristalizadas e polvilhado de açúcar era partilhado, em família, apenas no curto período do Natal.
Uma tardia legislação dos anos 90, mais tarde amenizada, veio proibir a introdução da fava que traduzia, para aquele a quem coubesse, na fatia, a ritual obrigação da oferta do bolo no Natal seguinte, igual proibição se alargando à introdução do “brinde”, que poderia ser moeda de algum valor ou miniatural representação escultórica do Menino Jesus ou outros símbolos do Natal, mercê do perigo que poderiam trazer para a saúde.
Com o passar dos anos, o clássico bolo-rei em forma de coroa, onde a patine dourada ganha no forno evocaria a tradição real e as coloridas frutas os presentes dos Reis Magos, foi alargando o tempo de seu consumo, não se olvidando, todavia, a evocação da época natalícia.
Mais recentemente, nesta época em que se intenta a padronização dos sexos, inventou-se o “Bolo-Rainha”, cuja massa apenas contém frutos secos e mais tarde se inventou o dito “bolo-escangalhado”, uma metafórica referência, decerto, ao desconcerto do mundo nos dias que são os nossos.
Mas no rasto da iguaria maravilhosa está sempre o espírito de família e a singular presença do “Espírito de Natal”.