LIVRO PROIBIDO

Regresso aos livros - sempre os livros - partilhando convosco as minhas leituras.

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Jung Chang em Cisnes Selvagens – Três Filhas da China – conseguiu dar-me um verdadeiro murro no estômago. Houve passagens descritivas das torturas feitas que amarfanharam as minhas entranhas e em que quase me apeteceu vomitar. Eis a história da China antes, durante e depois de Mao, ao longo de três gerações: avó, filha e neta, de 1924 à Primavera de 1989, ano em que a autora regressa à China e faz a pesquisa que lhe faltava para este livro.

Que viagem pela cultura chinesa este livro nos oferece, meu Deus! Desde a barbaridade dos costumes e tradições milenares como enfaixar os pés das mulheres – essencial para obter um bom casamento, à prática frequente do sistema de concubinato, ao estigma de nascer e ser mulher, aos pesados preconceitos morais, passando pelo ópio, chegando a Pu Yi, o último imperador da China, à invasão japonesa, à chegada do Exército Vermelho soviético, ao Kuomintang e depois ao Comunismo de Mao e à Revolução Cultural, às perseguições, às atrocidades da tortura, tudo neste livro é um documento sólido de uma cultura de ritos, de uma sociedade feroz, de um povo sofrido, quase inerte, desumano…

Em 1924 a China estava mergulhada num caos onde a miséria, a fome, o frio, a escravidão do trabalho imperavam. Na década de 30, os comunistas começaram a montar uma apreciável organização clandestina de resistência aos japoneses cuja invasão teve início em 1937. O que se seguiu foi a desastrosa tentativa de construir uma sociedade justa que, até à época de começar a sacudir o maoísmo, transformou a China num verdadeiro campo de batalha a céu aberto, dominando firmemente cerca de noventa e cinco milhões de pessoas, abolindo qualquer tipo de individualidade. Já nada podia ser considerado pessoal ou privado, sendo necessário pedir instruções ao partido para TUDO. Este tudo não especificado haveria de tornar-se o traço elementar do regime comunista. Isto significava, obviamente, que as pessoas não podiam fazer nada por iniciativa própria de forma a evitar problemas de nepotismo.

Juntar-se à Revolução significava abdicar de absolutamente tudo, sobretudo da humanidade. E os “camaradas” encarregar-se-iam de perseguir, punir, violentar, massacrar, torturar todos os que não seguissem à risca as leis do partido que exigiam pessoas “endurecidas”, frias, déspotas, portanto ignorantes. Assim, quem “entrava para a revolução” nunca mais podia sair.

Mao exigiu tudo de todos. A sua máquina propagandista, trituradora e panfletária de desinformacao e de compor a realidade obrigava a agitar bandeirinhas de papel vermelho com cinco estrelas (a nova bandeira da China comunista) e a usar “os sapatos da revolução”.

Mas isso era o menos… A família, a higiene, o prazer, o conforto, tudo era considerado antiproletário, logo sancionado e punido. A reforma do pensamento, pedra de toque do regime, levava a uma permanente intromissão do Partido nas vidas privadas das pessoas e todas as semanas decorriam sessões de “exame de pensamento” e de “autocrítica”. O controlo comunista da informação – altamente compartimentalizada e racionada, paralelamente à invenção-chave de Mão que consistia em envolver toda a população no mecanismo de controlo, transformou a vida das pessoas num inferno.

Pensar por si mesmo era considerado inaceitável e qualquer tipo de pensamento independente era visto como uma ameaça à união que Mao proclamava. O que se seguiu todos sabemos: os meios de comunicação ficaram sob controlo do Partido. Se tivermos em conta o facto de o nível de instrução do povo chinês sempre ter sido muito baixo e de o país sempre ter vivido sob regimes ditatoriais que funcionavam conservando o povo ignorante e, em consequência, submisso, encontramos aqui o contexto ideal para o domínio e a liderança de Mao.

Passou a ser proibido cozinhar em casa e obrigatório comer nas cantinas, 100 milhões de camponeses foram desviados para a produção de aço, foram criadas as comunas e, com a chegada dos anos sessenta, a grande fome espalhou-se por toda a China. Milhões de camponeses morreram de fome e pais comeram filhos…

Em suma, sob a ditadura de Mao, “a nação inteira mergulhou na mentira.” O culto e o endeusamento de Mao encheu o povo de ódio pelos inimigos da classe e o que se seguiu deve ser lembrado por todos: o Medo alastrou de tal forma que as pessoas nem se atreviam a pensar…A dita Revolução Cultural reduziu a pó a essência da China e do seu povo. O sofrimento e a angústia humana eram coisas que não preocupavam Mao, cego pelo poder demoníaco: “O que fora que transformara as pessoas em monstros? Foi neste período que a minha devoção a Mao começou a esmorecer”.

Citando Confúcio: “Jiang-xin-bi-xin”. Ou seja, ‘imagina que o meu coração é o teu coração”. Só assim poderemos perceber as violentas e desumanas atrocidades praticadas, aqui narradas, vividas e sentidas pela autora antes de deixar a China e conseguir “esse feito enorme” que foi vir para o Ocidente: “Foi a partir desta altura que desenvolvi a minha maneira de julgar os chineses, dividindo-os em duas categorias: uma humana, a outra não.”

Cisnes Selvagens é ainda hoje, obviamente, um livro proibido na China.

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