De Vez

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Amo-te

Quando já não queria sonhos nem cavaleiros, tropecei literalmente em ti, cai, fiquei com os joelhos esfolados. Limpaste as feridas com água oxigenada que não arde.

Deixaste-me em casa, pousaste um CD embrulhado em papel de jornal, o Público, penso. Saíste. Ficou um mês no mesmo sítio.

Num dia de tédio asfixiante acabei por pegar no CD. Era doce. Air, Moon Safari. Deitei-me no sofá, dormi uma hora. Depois deixei-o encher a sala, pouco a pouco encheu-me de ternura.

Ri quando apareceste no jardim. Como sabias que estava ali? Não respondeste e pediste uma água. Não dissemos muito, mas falámos imenso. Convenceste-me a ir ao cinema. Chorei o tempo todo e tu fingiste que não reparaste.

Pedi-te para me levares a casa, mas argumentaste que estava tão bonita que tinhas de me levar a jantar naquele restaurante de cozinha de fusão, eu que não me preocupasse que era o cartão Visa da empresa que pagava. Ri de novo.

Era deliciosa a comida. Passeámos junto ao rio. Voltei para casa, para a melancolia que me habita. Ao lavar os dentes percebi que ri por duas vezes. Depois deitei-me. Vim-me várias vezes. Liguei-te a pedir para vires. Vieste.

Amo-te

Soube da morte do Ricardo naquela noite. Tinha saído para a festa de despedida de solteira da Ana, trajava um vestido azul acetinado. Alargava um pouco da cintura para baixo até ao joelho onde caía em duas rosas, também elas de cetim. Era lindo, sentia-me bonita, até ao sms. Tudo rodou à minha volta, um buraco deu lugar ao estômago, perdi-me do grupo, perdi o telemóvel.

Vi um bar que não conhecia, pedi uma tequila ao barman que retorquiu: quer um shot de tequila? Não, quero uma tequila. E traga outra sempre que o copo estiver vazio.

Entraste no bar, olhaste-me nos olhos, eu vi-te a dobrar. Perguntaste ao barman o que estava a beber e, apesar do ar consternado deste, ofereceste-me outra tequila. Virei-a num instante e corri para a casa de banho. Estavas à porta quando saí, pegaste-me no cabelo enquanto lavava a cara, deste-me o teu lenço para a secar, depois de me recompor perguntaste-me o nome. Fomos de braço dado para eu apanhar ar num passeio pela baixa de Lisboa. Mal falámos. Despediste-te sem pedir qualquer contacto. Ainda bem, queria chorar o Ricardo em vez de conhecer alguém. Passou o funeral, passou um pouco da dor, resolvi passar pelo bar. Ali estavas. Conversámos a noite inteira, os dias inteiros até àquele em que fomos morar juntos. Vinha-mo-nos em catadupa, todos os dias, até casarmos.

Depois, tivemos dois filhos, fomos felizes para sempre. Com as crianças passámos a vir-mo-nos de quando em vez.

Amo-te

Não tive hipótese, encantei-me por ti. Dei-te tudo, trouxe ao de cima tudo o que tinhas e nem sequer sabias, dei-te a família onde faltava a mulher. Ganhaste um amor próprio infinito, excessivo, que desequilibrou aquele que davas, deste cada vez menos, até acabar. Tanta falta te fiz, e do nada, deixei de fazer.

Jogaste um jogo mauzinho, mesquinho. No dia que bati com o carro foste ver o jogo de futebol, no dia da entrevista com aquela pessoa tão importante, esqueceste-te de perguntar como correu. Querias que fosse eu a acabar. Cobarde. Uma noite, pus-me em cima de ti e fiz-te vir três vezes em três tempos. Deixei-te de vez.

Amo-te

Fiquei imóvel a olhar para o quadro, o quadro de que Van Gogh disse ter sido o mais feio que pintou. Não sei quanto tempo estive ali dentro, do quadro, com as lâmpadas esborratadas de amarelo-torrado, a mesa de snooker mal dimensionada, os corpos sem vida por ali sentados. O vermelho que ali reina. Não sei quanto tempo estive ali dentro até um olhar observador, persistente, me fazer desviar do quadro. Cabelo negro, curto, roupa sóbria, um olhar profundo que me fez sentir nua. Voltei a olhar para o quadro, acercaste-te de mim. Partilhaste comigo o amor que se tem àquele quadro, à angústia da noite.

Devemos ter corrido todos os canais de Amesterdão, era de madrugada quando parámos. Convidaste-me para tomar o pequeno-almoço na tua house boat. Querias mostrar como a mesa no deck baloiça com a pequena ondulação da água, mas nada em cima dela cai ou parte. É magia, dizias. Agradeci uma e outra vez, mas não podia ficar. Argumentaste que já tinhas companhia para dormir, o teu grande amor esperava-te, eu tinha sorte em ficar no sofá. De tanto rir consenti, tomámos um pequeno-almoço ondulante, deste-me uma manta fofa para me deitar. Nery, o teu grande amor, um podengo preto, meio salsicha, há muito que te esperava no quarto. Ao final do dia meti-me com vocês na cama, o Nery saiu. Juntos éramos bombásticos, eras o grande amor da minha vida, o melhor amante.

Mudei-me para Amesterdão, mudámo-nos para uma house boat maior, adoptámos a Lady. A cadela, preta também, o Nery, nós… nós éramos todos absolutamente felizes. Até àquele jantar.

Fomos a casa de amigos e conhecemos o Anthony, artista plástico, giraço, culto, com um humor que me fez soltar gargalhadas a noite toda. Nunca te aproximaste de nós, não reparei na altura.

Já em casa, perguntaste tudo e mais alguma coisa sobre ele. Primeiro achei piada, depois assustei-me. Respondi a tudo o que sabia, mas foi nas perguntas para as quais não tive resposta que elevaste a voz, aproximaste-me de mim, chegaste a dar-me um encontrão e depois fez-se negro.

Acordei contigo a pôr-me compressas no olho inchado, já era dia. Pediste desculpas mil vezes, andavas stressado com o trabalho, foste um idiota que teve ciúmes de outro idiota à conversa com a mulher mais poderosa do mundo. Desculpa, desculpa, não volta a acontecer.

Fui em silêncio para a casa de banho, olhei o meu rosto, chorei, o meu íntimo disse para fugir, mas eu amava-te, foi só aquela vez. Fiquei, melhorei, viemo-nos o fim- de- semana inteiro.

Na 2ª feira saí para trabalhar, mas apanhei antes um táxi para o aeroporto. Fugi de ti, nunca mais me viste.

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