Quando Mísia enviou uma carta a Deus

Mísia (Susana Maria Alfonso de Aguiar, de seu nome completo), nasceu no Porto a 18 de Junho de 1955 e viria a falecer em Lisboa, a 27 de Julho p. p., «em paz, serenamente, sem dor, rodeada pelos amigos», vitimada pela doença que a atormentava desde 2016. Escreveu Jean-Luc Gonneau, no LusoJornal de 13 de Agosto, uma sentida evocação da cantora, em que traduz, no final, a carta («duma profundidade elegante, plena de alegre ironia») que Mísia publicara em Setembro de 2021, no seu perfil (Susana Aguiar).

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Querido Deus

Não sei se te lembras de mim e de um episódio passado há muito tempo, no Colégio Liverpool no Porto. Com treze anos e depois de ler “Porque não sou Cristão” (tu sabes qual o autor), com a frontalidade que ainda hoje conservo, fui direita bater à porta do gabinete da Madre Directora comunicar-lhe pessoalmente que já não acreditava em Ti.

A seguir deitei fora a minha coleção de santinhos de que tanto gostava, suas nuvens trespassadas por feixes de luz celestial.

Interna desde os seis anos, fiquei mais só a partir desse dia. Uma solidão cósmica, sem nenhuma luz ao fundo do corredor. Visualizava-me como uma astronauta pendurada pelo cordão da cápsula espacial, com o negro infinito do espaço como edredon eterno.

Três anos mais tarde li “O Mito de Sísifo” e então aí é que ficou tudo estragado entre nós.

Hoje percebo que a função da ideia de Ti teria sido uma útil consolação para o vazio afectivo daqueles anos e dos seguintes. Mas nesse tempo eu ainda não possuía a sabedoria necessária para aceitar que a verdade não é o que mais interessa, e que a ideia de Ti não tem um valor fixo.

Não sabia que a tua morte pode ser um enorme vazio, sobretudo para uma agnóstica como eu.

Sou hoje uma agnóstica não praticante. Pago promessas na ilha japonesa de Enoshima, a BentenSan – ciumenta deusa das gueishas, dos artistas e jogadores – e trago sempre comigo um minúsculo Santo António (versão homeopática) que faz tudo o que lhe peço: só milagres muito pequeninos e sempre possíveis.

De facto, nunca me refiz do luto de Ti.

Por isso a voz desta carta é ainda a daquela aluna que não quis mentir por omissão. Por isso, esta é uma carta íntima só entre tu e eu, um textinho sem grandeza ou sombra literária, sem pretensões deontológicas. Nada de Heidegger, Levinas, Nietzsche ou Coleridge e a sua suspensão da incredulidade.

Querido Deus, tenho tantas perguntas a fazer-te! Algumas desde os treze anos, outras desde ontem.

É verdade que depois de criar o mundo, te foste embora não vendo assim o que fizeste?

Nunca viste os tsunamis que nos engolem, os fogos que nos abrasam, os ventos que nos estrelam contra coisas duras, e os raios que nos partem?

Nem as crianças em fase terminal nos hospitais morrendo devagar, com olhos febris como lagos cintilantes?

Porquê tiveste tanta imaginação para células doentes e vírus mutantes?

Não sabes nada da falta de compaixão da humanidade, da tortura, das violações, da crueldade entre nós? Do nosso sofrimento físico e moral? “Heavy furniture”, querido Deus…

Talvez as minhas perguntas te pareçam impertinentemente ingénuas, mas – qual Lilith – fiquei para sempre cristalizada no estádio de estarrecimento primário que me provocou e provoca o tipo de lugar em que nos puseste.

Dirás que só te falo de grandes catástrofes e da barbárie mais extrema. Que as flores são lindas, que as joaninhas têm design dos sixties, que os passarinhos cantam e que as crianças sorriem sem motivo. Sim, são excelentes argumentos aos quais sou sensível, mas não chegam para acalmar mil dúvidas (algumas bastante quotidianas), acumuladas desde o Colégio Liverpool.

És capaz de assistir a um documentário da National Geographic sem tapar os olhos quando o bebé antílope mais frágil, de pernas a tremelicar imenso, vai ser mesmo comido?

E a calçada portuguesa, não podias fazer de maneira que continuasse a ser “tãaao linda!” mas menos letal de modo a não enviar para a traumatologia os idosos com osteoporose? E já agora, que também se pudesse andar com sapatos de tacão sem o risco de partirmos a moleirinha?

Não achas que evitar a segunda parte de Bambi teria sido uma boa operação de marketing para a tua imagem?

Por favor Deus, diz que sim! Não podias inventar um nome mais poético para Ranholas?

Temos também o caso da estátua do Pessoa no Chiado – ele tão pouco sociável – numa exposição sem defesa, entregue aos turistas de Badajoz. Achas que ele merecia uma coisa assim?

E pela Tua Santa Saúde, não podias aconselhar o João Braga a decidir de uma vez por todas em que tom quer cantar?

Desculpa a irrelevância e a provocação de algumas questões mas como muito bem sabes, fizeste-me irresistivelmente imperfeita. Poderia continuar a importunar-te com a minha curiosidade, mas com que sentido perguntar ad aeternum?

Não sei se algum dia e de que maneira me responderás. … Nem sei se ainda quero as Tuas respostas. Era de facto mais fácil até aos treze anos quando estavas dentro de mim e não precisava de te escrever.

Lenta genuflexão,

Mísia

Ps: Ah, já me esquecia!

Obrigada pelos pinguins, cães salsichas, peixinhos da horta e tremoços.

Pela maravilhosa Celeste Rodrigues, Yoshitomo Nara e Mahler.

Obrigada pelas palavras “cogumelo e borboleta”. (Delete “fronha” please)

Obrigada pelo milagre das cerejeiras em flor e pelos barquinhos de papel.

Ten points por Veneza! Yess!

Sincera e eternamente agradecida pelo meu fantástico gato Vírgula!

(Escrito em 2017)

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