Domingos Barradas foi um dos que decidiu pôr em livro «Memórias avulsas dos anos de 1942 a 1955», as suas «vivências e convivências» de então. Preferiu, porém, fazer também ressuscitar a vida da sua terra natal, Vendinha, que fica ali a meio caminho entre Évora e Reguengos. Uma daquelas que deve o seu nome a uma «vendinha» que seria o ponto de encontro das gentes, quer para comprarem mercearias e tudo o que para a casa se precisava, quer para apenas se beber um copo com os amigos.
O Domingos foi um dos que teve sorte: calhou-lhe a Professora Maria Isabel, uma bênção, pois veio substituir outra «ainda hoje recordada pela negativa»: «os próprios pais das crianças e a população, em geral, sentiam um verdadeiro constrangimento sempre que viam caminhar pela rua tão malévola personagem». Os homens aprumavam-se à sua passagem, «como militares na parada, tirando daas suas cabeças os seus velhos, gastos e amarrotados chapéus ou bonés, ao mesmo tempo que se curvavam para a frente, em sinal de um misto de temido respeito e forçada reverência!…». E se um deles estava distraído tinha direito a «uma pública e humilhante reprimenda».
Primeira tarefa da novel professora foi, pois, a de ir de porta em porta arrebanhando a criançada para a escola. O êxito foi total – que, ainda hoje, é lembrada com saudade.
Do Domingos acabou por ser madrinha e com ele manteve correspondência vida afora. Teve o autor a feliz ideia de reproduzir algumas dessas carta, que mostram não apenas a natural excelente prosa mas sobretudo – e isso não deixa de encantar! – a primorosa caligrafia!
As festas
Deixemos, pois, de parte a palmatória, a menina dos cinco olhos, as orelhas de burro tão vulgares na década de 50 e… vamos à festa, não sem, antes, louvarmos o facto de Domingos Barradas não haver hesitado em mostrar, no seu livro, um verdadeiro álbum de fotografias das pessoas e dos ambientes, com a respectiva identificação. Fez muito bem.
A festa anual da Vendinha era em honra de Nossa Senhora da Luz e de S. Vicente do Pigeiro. Venera-se o santo no altar-mor da igreja matriz, onde há a sua imagem esmaltada; a igreja actual data de finais do século XVI.
Todos se movimentavam para que a festa fosse de arrombo. Os senhores Condes da Ervideira, donos do próximo Monte da Furada, não se faziam rogados na ajuda; mas eram as senhoras e, sobretudo, as «moçoilas que já tinham mancebo como seu namorado ou que esperavam ansiosamente por arranjar namoro», que se afadigavam a confeccionar manualmente toalhas rendadas, lençóis de linho e almofadas, pintavam loiças, faziam quadros… para tudo vir a ser arrematado na quermesse:
– Tenho aqui esta linda e preciosa toalha de linho, bordada com perfeição pela menina Maria Angélica. Vai a leilão por cinco escudos,. Quem dá mais?!..
E havia a procissão, a tourada, as bandas de música de Montoito ou de Reguengos, o ambicionado balho e os foguetes, cujas canas eram disputadas pela criançada, «entusiasta e saltitante», «um verdadeiro frenesim»: corriam «desalmadamente em direcção ao local onde as canas dos foguetes explodidos caíam, para as apanhar e as utilizar depois nas suas brincadeiras!…».. Quanto mais canas apanhasse, mais herói o rapazinho se sentia!
Perpassa, pois, por estas páginas, numa linguagem chã, sem o mínimo prurido de «literatura», o viver nesses meados do século XX, com as dificuldades do após guerra a serem sentidas por todos, mas também a serem sanadas por todos em sã convivência.
Ao cair da tarde – conta Domingos Barradas – «depois de um dia de árduo e extenuante trabalho», os homens ajuntavam-se a um canto da taberna, bebiam uns copitos, petiscavam «pedacinhos de toucinho e chouriço assado, passarinhos e pernas de rã fritos»… E adregava saltar uma quadra e a moda tradicional era entoada a preceito, com aquele ali a fazer de «alto» e os demais a seguir.
Bom dia Zé
A matéria inicial desta crónica diz-me muito, porque foi uma PROFESSORA primária, ou do primeiro ciclo como hoje se diz, que me ensinou os princípios fundamentais pelos quais ainda hoje rejo boa parte da minha vida.
Saí de uma escola onde, aos seis anos, fui ameaçada de levar com a régua – enorme, maciça – por não querer bater numa colega, a minha melhor amiga, a quem fui ajudar a resolver no quadro um problema de Matemática. Levei com a régua.
O pecado dela foi não saber resolvê-lo, por estar tão temerosa que nem via como. O meu foi saber resolver e não querer “castigá-la”. Fomos as duas castigadas, numa cena que na altura me deu vómitos (pelo medo, pela revolta) e que mereceu do meu pai e de algumas pessoas amigas, profunda censura por tal método “pedagógico”.
A nova Professora não era jovem, já tinha sido professora da minha mãe, mas era exemplar até na humanidade com que mandava cozer pão e dar, todos os dias, o pequeno almoço às crianças que não o tomavam: café com leite e pão com uma fatia de queijo.
Festas também promovia, com o marido (professor dos rapazes) a propósito da apanha dos frutos do pomar, distribuídos equitativamente, escrevendo peças para todos representarem e dando, aos sábados, lições de bordados e de jardinagem numa outra festa: a dos sentidos.
Já falei dela em dois livros, mas aqui é só o momento para te agradecer a oportunidade de, a propósito de um livro de memórias gratas, também eu poder lembrar as minhas.
Um abraço. Bom domingo.
A memória mais forte que tenho da minha professora primária foi uma carga de porrada que nos deu (eramos quatro) apenas porque chegámos atrasados a uma sessão solene na escola. Entrámos na sala a meio do discurso do diretor, uma ofensa. E uma vergonha para a professora dos 4 meliantes. No final daquilo, depois de regressados à sala de aula, levámos lambadas que fez faísca…
Com raras excepções, Carlos Narciso, era uma brutalidade exercida contra crianças indefesas, que deviam estar protegidas, na escola, de quaisquer violência.
Matéria que daria para um livro, porque era tal a confusão mental das e dos professores malcomportados, que a primeira, depois de uma repreensão do meu pai, até me ofereceu um “santinho” (uma santinha) para eu me lembrar sempre dela!!!
Ainda a guardo…Atrás está assinada pelo meu primeiro amor: António, o menino mais bonito da sala ao lado e de toda a escola, que na hora do recreio premiou a minha atitude com essa distinção.
É dele que me lembro quando vejo a imagem…
De: Ana Clare
4 de agosto de 2024 10:24
Muito bom, faz-nos saltar para esses tempos de sã camaradagem.
Apesar dos tempos cruéis para muitos, todos se uniam e ajudavam. Bons tempos, impossíveis
de ver neste mundo de egoísmos, onde cada um só olha para o seu umbigo.
Bem hajas, compadre!
Adorei, deve ser um livro interessante de comer de princípio ao fim.
De: maria helena coelho
4 de agosto de 2024 16:06
Eu também fui das ditosas que tive uma professora que me ensinou para todo a vida- ensinou-
me o método de trabalho.
Sempre a tenho nas minhas orações.
De: Regina Anacleto
4 de agosto de 2024 17:40
A minha Professora primária (que nunca vi bater nem me consta que alguma vez batesse em
algum aluno) morreu há 5 ou 6 anos, dois meses antes de festejar os 100.
De: joao gouveia monteiro
4 de agosto de 2024 17:42
Estimado Amigo, o bom sabor da ruralidade alentejana nesta mensagem. Quanto me lembro
do meu bom professor primário, o Professor Saul, diretor da Escola dos Olivais. Quanta
influência um bom professor pode ter na vida e na carreira de um aluno!
De: José Amado Mendes
5 de agosto de 2024 19:15
Obrigado Zé; muito interessante.
Também eu tenho memórias do meu tempo de escola primária, em Torre de Bera, nos
arredores de Coimbra (1945-1950), umas boas, outras nem por isso.
De: Genciano Morais Afonso
Obrigado, Zé, por me teres recordado o meu professor primário pela experiência do Domingos Barradas na Vendinha. Belos tempos…
De: Vanda Maria Amaro Jardim Fernandes <vandamajf@gmail.com>
6 de agosto de 2024 17:58
Gostei imenso do texto, voltei à infância e ainda recordo bem as minhas professoras primárias: na 1a classe, em Lisboa, a profª Rosita e nas 2a, 3a e 4a, em Luanda, a profª Elsa. A minha velha cabeça está ainda recheada de memórias e a lembrança destas queridas professoras é tão boa !!!…
De: Alberto Silva
6 de agosto de 2024 15:20
Só a resposta do José d’Encarnação me deu a conhecer o livro do Domingos Barradas. O meu tempo de Escola Primária não foi ditoso. Tenho o maior apreço por todos os professores. O maior. Mas a minha professora assombrou-me a infância. Muito berro, muita reguada. Mas era boa professora. Outros tempos, outros métodos. Ditoso Barradas.