Ensaio sobre o toque

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detalhe de A Criação de Adão, de Miguel Ângelo, no teto da Capela Sistina, Vaticano

Tanto o meu labrador como o gato ambos vemos que se sentem contentes ao sentir o toque de uma carícia dos donos. E, nos nossos dias, tornou-se já habitual terminar uma mensagem com a palavra «abraço(s)», que sentimos mais ternurenta que a pressa de um beijinho quase a despachar; o verdadeiro abraço jamais pode ser dado a fugir!

E fixei-me, por isso, na importância do toque e nas várias acepções desta palavra, riquíssima, afinal, de significados. Objectivos e subjectivos.

Lembro-me que, no momento da primeira vaga de refugiados ucranianos, se chegou a alvitrar o silêncio do toque da sirene dos bombeiros ao meio-dia, porque as crianças, recordadas do que tal lhes significara em cenário de guerra, ficavam de novo espavoridas.

detalhe de A Criação de Adão, de Miguel Ângelo, no teto da Capela Sistina, Vaticano

Mas quantos toques não temos nós? Nem sempre portadores de alegrias, diga-se desde já.

– O toque da campainha da porta, da escola para começarem ou acabarem as aulas, o toque da buzina da fábrica…

– O toque como acto médico. Também não nos agrada lá muito.

– O toque rodoviário e as declarações e o seguro e a comunicação à polícia e o engarrafamento… bolas para o toque!

– O toque como sinal: «Dá-me um toque!», um beliscãozinho se estou a falar de mais e o melhor é calar-me já, ou para continuar a falar e deitar ainda mais lenha na fogueira; ou uma telefonadela a avisar que é tempo de sair da cama (qual toque de alvorada).

– O toque do telefone. Dantes, era sempre o mesmo e para toda a gente, o de casa, que outro não havia.; agora, não só o do telemóvel se escolhe como o de casa também, ao gosto de cada um e de acordo com as respectivas capacidades auditivas.

– O toque na tauromaquia refere-se, de ordinário, a algo não desejado. Ou é  cornada no cavalo ou num dos humanos intervenientes, sobretudo nos moços de forcado e aí o melhor é acautelar-se mesmo.

– Importante é igualmente o toque na esgrima. «Touché!», grita o árbitro, atento, mesmo quando as espadas estão ligadas a um circuito que logo acusa o toque.

– «Acusar o toque!»: cá está uma expressão deliciosa. Significa, por exemplo, que o indivíduo não ficou indiferente diante de uma insinuação malévola, um reparo… e reagiu ou se pensa que irá reagir. «Touché», o vocábulo francês também aqui pode aplicar-se tanto no sentido negativo (de amuo) como no positivo (de contentamento – «Quanto me tocaram essas tuas palavras, Amor!»)

– O toque na fruta: «Amigo, esta maçã está tocada!». Há na casca o sinal de que o bicho a quis saborear primeiro que nós, o esperto.

detalhe de A Criação de Adão, de Miguel Ângelo, no teto da Capela Sistina, Vaticano

Tanto na tropa como nas corporações de bombeiros, por exemplo, há toques distintos: o toque de silêncio (uma maravilha!), o toque de sentido (solenidade!), o toque para descansar (que bom!). Recordo que, na semana de campo, um dos exercícios obrigatórios era ter de acordar a meio da noite, ao toque de «Inimigo!». Era desarredar à pressa a manta, agarrar na G3 e sair para a formatura já. Curiosamente, numa das minhas semanas de campo, o corneteiro não fora treinado para o toque de «Inimigo!», só sabia o toque de «Fogo!». Ficou, pois, assente: «Soldados, não é incêndio, é inimigo, entenderam?». E lá íamos nós em demanda do inimigo, fictício ou real, nunca se sabia como era. O toque é que era uma chatice, não nos deixava em sossego duas horas seguidas, estávamos em treino de guerra.

detalhe de A Criação de Adão, de Miguel Ângelo, no teto da Capela Sistina, Vaticano

E já que falamos em treino de guerra, há um outro toque, nem sempre pacífico, a que, amiúde, se tem de recorrer:

«Ouve lá, tu tens uns conhecimentos na Câmara, não é verdade? Poderias, se calhar, dá lá um toquezinho a alguém, a ver se aquele processo se despacha, que está encalacrado aí nalguma gaveta e não vejo meio de sair de lá. Um toquezinho era capaz de… que é que tu achas?».

Bem, o melhor é mesmo não tocar agora nessoutros toques e voltar ao do início, ao toque maior que nos encanta os dias e as noites: o abraço. Até já inventaram o «Dia Mundial do Abraço». Fui à Internet ver quando é: a 22 de Maio! Acho que devia ser todos os dias. Pelo menos, de vez em quando e várias vezes por ano, me aparece a mensagem «Hoje é o Dia do Abraço! Já abraçaste alguém?». E creio que nem sempre é a 22 de Maio.

Abracemo-nos. O conforto que traz o contacto quente dos nossos corpos, mais ou menos prolongado, sobretudo se prolongado, vale mais que aquela milagrosa  mezinha caseira que outro alguém nos quis receitar para nos sentirmos melhor. Não aceitámos. Preferimos o abraço. Ou à nossa maneira bem portuguesa: o abracinho terno! Um dos casos em que o diminutivo (‘abracinho’) substitui, com esclarecido proveito, o aumentativo, o «abração», que lembra logo fortes palmadas nas costas. E isso de palmadas (ou mesmo palmadinhas…) nas costas a gente não gosta lá muito, porque são susceptíveis de trazer água no bico – e bicada, por mais ligeira que seja, nunca é toque que deveras se aprecie!

A Criação de Adão, de Miguel Ângelo, no teto da Capela Sistina, Vaticano

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