As ruínas, ou melhor, o sítio de Balsa sempre ocupou um lugar especial na minha memória. Há muitos anos, quando o Algarve ainda não tinha hotéis e passava em Tavira em casa de familiares longos verões, lentos e azuis, muitas vezes por lá passeei, bafejado pela brisa da tarde, ao longo do caminho que de Santa Luzia levava para Ocidente, vendo o Sol desaparecer por trás do Monte Figo. Assistir à destruição quase sistemática do que poderia ter sido um importante sítio arqueológico sempre me incomodou, pois nada o justificava. Ora, apesar de tudo, o delapidado sítio de Balsa, cidade marítima largamente aberta a África e ao Oriente, sobreviveu à avalancha de construções de finalidade turística que subverteu o Algarve e ainda tem muita história para contar. Assim sucedeu com dois pedestais honoríficos, semelhantes a aras, cujos textos permaneceram ilegíveis até há bem pouco.
Durante anos e anos serviram de pilares de entrada do caminho que conduzia do canal de Tavira à Quinta da Torre de Ares, para o que o seu formato se adaptava bem, quinta em tempo propriedade da família do distinto arqueólogo tavirense Estácio da Veiga, que aí as terá colocado. Abandonada a casa, os monumentos lá ficaram, bem visíveis, resistindo a todas as tentativas de leitura do que se escondia nas pedras, em parte por se encontrarem cobertas de cal, consideradas anepígrafas, ou seja, sem inscrições. Mas, como tantas vezes sucede, não era bem assim. Vi os monumentos várias vezes, a última vez já abandonados, em 2016, um deles por terra, com traços de inscrição visíveis. Sempre considerei a possibilidade de, com boas fotografias, ser possível tirar alguma coisa de tão estropiados letreiros, mas como fazer boas fotografias nas deficientes condições existentes? Nessa visita consegui ler alguma coisa que me entusiasmou, palavras como CAESAR, EORVM, e a fórmula final DD. Tudo indicava tratar-se uma inscrição honorífica a um ou mais imperadores, seguramente não anterior ao século III.

Felizmente, o Projecto Balsa, tutelado pela Universidade do Algarve e Câmara Municipal de Tavira, apesar de algumas incompreensões – que sempre ocorrem nas lides arqueológicas – avançou e permitiu reiniciar o estudo do sítio, o que me facilitou o acesso aos monumentos e assim concretizar uma aspiração de décadas. Com efeito, as excelentes imagens MRM (Modelo de Resíduo Micro-morfológico), produzidas por Hugo Pires, possibilitaram a leitura de grande parte do que constava nas inscrições. Os pedestais iam finalmente, falar! O que disseram é realmente importante para a história desse recanto do Golfo de Cádis onde as cidades do Círculo do Estreito conversavam umas com as outras e não penas em Latim. Temos, assim, três inscrições honoríficas, duas no mesmo suporte, decerto reutilizado por economia. Estamos no século III e as coisas não corriam da melhor forma! E também não estavam bem politicamente, pois um dos textos foi laboriosamente apagado, pouco se lendo além das fórmulas habituais, alvo da Damnatio Memoriae, acto que consistia em apagar o nome de alguém caído em desgraça, prática que, como é sabido, ainda permanece. Um dos textos lê-se bem, revelando uma homenagem ao filho do imperador Galieno e da imperatriz Salonina, o jovem Salonino. O segundo pedestal, quase uma ara, lembrando modelos africanos, transmite um texto do mesmo tipo mas no qual o nome do imperador, talvez Valeriano, escapou até agora a todas as restituições possíveis.

A inscrição de Salonino diz o seguinte: AO MUI NOBRE CÉSAR CORNÉLIO LICÍNIO SALONINO, FILHO DO NOSSO SENHOR IMPERADOR CÉSAR PÚBLIO LICÍNIO INÁCIO VALERIANO GALIENO INVICTO, PONTÍFICE MÁXIMO, PIO, FÉLIX, AUGUSTO – A REPÚBLICA DOS BALSENSES DEU E DEDICOU, POR DEVOÇÃO AO SEU NÚMEN E MAJESTADE.
A referência a Salonino como César, herdeiro presuntivo, é anterior a 260. Registada em Portugal pela primeira vez e rara na Hispânia, é muito importante pois comprova que o Sul lusitano se manteve do lado legalista no período conturbado que se seguiu à estrondosa derrota e captura do imperador Valeriano pelos Persas. A opção política dos algarvios da época, passe o anacronismo da expressão, encontra-se bem testemunhado noutros locais, como no excelente busto de Galieno achado na villa de Milreu, hoje no Museu de Lagos. Salonino, neto de Valeriano, conheceu a má sorte que coube a muitos governantes e pretendentes a governantes da época, pois foi assassinado, com apenas 18 anos pelas tropas revoltadas de Póstumo, na Gália. O pai e a mãe, mal julgados pela história, pois lhes coube viver no poço de víboras da política da época, foram assassinados alguns anos depois, em Milão, gorando-se a tentativa de continuar uma dinastia.
Desta forma, os dois pedestais de Balsa contaram um episódio particular do Ocidente romano, mostrando que os balsenses – e os seus vizinhos em Ossonoba (Faro) – se sentiam mais ligados ao Mediterrâneo, centro do poder legal, do que interessados em aventuras separatistas, como uma dedicatória a Aureliano testemunhará naquela cidade pouco depois. A publicação ainda este Verão do catálogo da Exposição Balsa Cidade Romana, patente no Museu Municipal de Tavira, revelará em pormenor a história destes pedestais, comprovando-se a necessidade de não desprezar monumentos difíceis, o que, neste caso, para meu grande contentamento, revelou uma situação até agora quase desconhecida. As palavras voam, mas os escritos ficam, mesmo quando parecem perdidos!
Apreciei muito esta informação ! Notável para a História de territórios hoje portugueses, outrora parte do Império !
Muito obrigado Prof. José d’Encarnação ! Bem haja !
Que texto mais belo para contar este pedaço de História escondido sob escombros e cal…
E os pedestais honoríficos falaram.
Primeiro porque Estácio da Veiga os guardou, ou usou como marcos na entrada do caminho da sua Quinta.
Depois porque Hugo Pires (topógrafo e cartógrafo, suponho) fez as imagens especiais MRM.
E finalmente porque um grande epigrafista como José d’ Encarnação, interessado nos pedestais de Balsa desde sempre e intrigado com os indícios de inscrições, leu e transmitiu o que a pedra queria dizer.
Adorei ler esta matéria.
E viva a Epigrafia.
Saúdo este belíssimo texto que nos traz ecos do passado.
Toda a Ciência se faz de contributos solidários. E se assim não fosse, a destruidora fúria de um “progresso” de medíocre homogeneização, neste caso arquitectónica, acabaria por soterrar, ou esconder, tudo o que vale a pena preservar.
Ainda bem que a persistência de Vasco Mantas deu frutos, com o apoio das imagens especiais de Hugo Pires, e que ficámos a conhecer um bocadinho da História pela leitura das inscrições nos pedestais honoríficos de Balsa, que um dia terão servido de marcos ao caminho da propriedade de Estácio da Veiga.
O outro contributo valioso é a solidariedade interpares. A um grande epigrafista como José d’Encarnação devemos esta partilha, ou o registo de mais este presente da Epigrafia.
É claro que se depreende que nem li o nome do autor ao apreciar o texto.
Vinha na coluna de José d’Encarnação e assumi como sendo dele.
Escrevi novo comentário quando me dei conta.
As minhas desculpas a Vasco Mantas e bem haja pelo belo texto e pela informação.
Não há problema, cara Helena. Eu percebi. Muito obrigado pela apreciação do texto, redigido em 1965. E aquele encontro meteórico aconteceu mesmo…
Não há problema, cara Helena. Eu percebi. Muito obrigado pela apreciação do texto.
Li com muita atenção, saboreei e aprendi.
Um grande abraço
José Azevedo e Silva