Esparguete fininho

O pai, em conversa, pediu-me para fazer uma, apesar de lhe ter dito que aletria faço para as crianças.

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Aletria é aquele doce que está sempre nos almoços e jantares intermináveis de família. E tanto está na mesa de um rico como na de um pobre. Não passa de uma massa, leite, açúcar ou leite condensado, ovos, canela, uma casca de limão, uma pitada de sal, outra de amor.

Aletria não se despeja em pires ou tacinhas, como às vezes se faz com o arroz-doce. Não, aletria é uma travessa grande, polvilhada com canela e tradição.  Aletria é para todos. É família.

Respondi ao pai que não, mas que faria uma ao filho, o pistautira, como gosto de lhe chamar. Na primeira vez, disse-o com um ar falsamente indiferente, com uma pontinha de provocação, de nariz empinado. Resultou. Devolveu-me, alto e em bom som: “Não me chames pistautira”! E disfarçou um sorriso.

Num plano que saiu trocado, fiz duas travessas de aletria em casa e levei uma para casa do pistautira, que foi para a cama cedo. O arroz de polvo do anfitrião não deixou qualquer espaço para sobremesas. Já depois de café e cigarros fui prová-la. Repeti, mas às escondidas na cozinha. Depois saí à rua e fui deambular com amigos.

Nunca soube se tinham comido e gostado, não houve um único comentário, o que, apesar de fingir que não, como qualquer cozinheiro amador que se preze, beliscou o meu ego culinário.

Mas, no final de outra jantarada, o pistautira perguntou ao pai se ainda havia “esparguete fininho”.  O pai sorriu, disse que não, que já tinha acabado, que estava muito boa. O pistautira olhou para mim, fez o seu melhor ar “ó pra mim tão querido e amoroso” e perguntou: fazes outra? Recapitulei rapidamente a agenda e respondi-lhe que amanhã seria difícil, tinha muito trabalho, mas que faria noutro dia. Ele não disse mais nada e seguiu para a brincadeira com o primo.

Na manhã seguinte consegui despachar o pequeno-almoço, loiça, banho e afins até às onze. Consegui até beber uma bica e comprar o jornal! Depois despachei emails, telefonemas e apontamentos. Sairia de casa às três e faria o trabalho todo seguido até às seis. Depois havia futebol.

Mas quando fui ao frigorifico para preparar o almoço lembrei-me do pistautira. Olhei para o relógio, eram vinte para as duas. Havia aletria, leite, limão e canela. Saí, com passo apressado para o minimercado da esquina que estava fechado. Desci à mercearia chinesa, sem sorte alguma. Hora de almoço. Uma transeunte sugeriu-me o LIDL que era logo ali ao virar da esquina. Não era, era mais um bocadinho. Comecei a pensar que me iria atrasar e apressei o passo. Trouxe uma lata de leite condensado, das pequenas, meia dúzia de ovos e voltei num ápice.

Uma panela com água a ferver, com uma pitada de sal. Separei as claras das gemas. Quatro gemas. Pus a Elis Regina a fazer-me companhia e mandei para dentro da panela seis novelos de aletria. Separei-os com calma, com a ajuda de um garfo e assim que se soltaram, desliguei o lume e escorri a massa. Abri a lata de leite condensado, e tive pena de não ter o pistautira ali ao lado para a rapar. Há coisa mais gira do que ver um puto a fazer isso? A seguir, depois de engolir uma colherada de leite condensado de que não abdico, despejei-o para a panela, enchi por duas vezes a lata de leite condensado com leite, misturei tudo e acrescentei duas cascas de limão e um pau de canela. Pus a aletria, o lume no mínimo e a colher de pau a rodar na panela. Não pode haver pressa a fazer este doce. Tem de se ter paciência, tem de haver vagar. Fiquei por ali, com a Elis a cantar “o nosso mais que perfeito está desfeito” e a pensar no pistautira. Nas frases bonitas que disse só a mim, só para mim. Nas nossas partidas, que só nós é que achávamos um piadão. Nos nossos segredos, selados com um piscar de olhos. Sacana do pistautira, é giro que se farta!

Tirei a aletria do lume, pois há muito que o leite fervera, a rir-me com o seu paladar de adulto e apetite devorador. O pistautira come bem, mais do que muitos crescidos que conheço, gosta de tudo, e comigo rendeu-se aos cornichons, aqueles pepinos pequeninos, avinagrados, crocantes, deliciosos, saborosos, irresistíveis.

Dei tempo à aletria para arrefecer, só um bocadinho, e juntei as gemas batidas. Despejei-a numa travessa redonda, depois de retirar as cascas de limão e o pau de canela que serviram para decoração. Na mão coloquei canela que fui espalhando aleatoriamente. Quando, ainda miúda, fazia  arroz-doce com a minha mãe, tinha um verdadeiro prazer em humedecer a borda de um cálice de vinho do Porto, passá-lo por canela e fazer desenhos com bolas por cima do arroz, tipo carimbo.

Agora adulta, gosto de polvilhar até cobrir completamente a travessa. Tem de saber a canela.

Almocei, arrumei a cozinha e antes de sair deixei um bilhete: “Foi feita meio à pressa, mas com carinho”. Assinei e acrescentei uma nota: “Coloquem no frigorifico”.

Eu gosto mais de aletria fria.

À mão de semear: massa de aletria, sal, leite condensado, canela em pó, leite, cascas de limão, ovos. Carinho.

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