Laranja

Foste tu pela net que sugeriste o jantar. Claro que adorei a iniciativa até porque desde há muito que recusas um convite ou desmarcas em cima da hora. Desta vez não. Desta vez foste tu quem se fez convidada. Excelente! Pus de imediato um lombo de porco a descongelar. Sabia precisamente o que ia fazer.

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Coloquei na tábua meia dúzia de alhos. Ao esmagá-los com a faca, vieram-me à cabeça as críticas acutilantes que fizeste ao longo do tempo, por vezes magoaram, mas sempre agradeci a sinceridade.

A situação também se invertia muitas vezes. Poucas vezes na realidade, mas era sempre a aprender sobre nós, sobre o mundo.

Sempre te achei perfeita (ninguém o é) mas o teu sentido critico, a tua cultura geral, o humor inteligente, a forma como desmanchas algo complicado em simples, seja a conversar comigo, ou a fazer um desenho a um energúmeno qualquer, são qualidades raras de encontrar numa só pessoa.

És um poço de carinho que, sabe-se lá porquê, pões uma tampa em cima. Consegui abri-lo… mas só às vezes.

Foste a melhor amiga durante anos, cresci tanto contigo, tanto. Dancei ainda mais!  Somos diferentes, sim, mas metades de laranjas diferentes.

Juntei massa de pimentão, erva de provence, cominhos, coentros mais um mix de temperos que comprei na mercearia da senhora de Viseu, vinho branco e muito gindungo. Tu, tal como eu, gostas de emoções fortes.

Cortei ao meio batatas de ir ao forno, duas ou três cenouras para reforçar a cor do prato. Laranja, tal como a nossa amizade, alegre!

Sal grosso e o sumo de três laranjas. Peguei na varinha mágica, desfiz tudo enquanto recordei as intermináveis caminhadas, jantaradas, as noites e os dias, as conversas estimulantes, a nossa interminável vida juntas. Rimos tanto com inteligência e absoluta falta dela!

No pirex reguei o molho em cima do lombo, acrescentei batatas e cenouras a contornar. O pirex ficou com uma cor eléctrica. Sempre disseste que eu era assim, eléctrica, nunca soube ao certo se era um elogio ou uma crítica. Era capaz de ser ambos. Tapei o pirex com uma folha de alumínio, deixei a marinar no frigorífico.

Foi pela língua portuguesa, como se diz e escreve, que a nossa amizade começou. Pela fonia que diferencia “molhos” de mesa e “mólhos” de brócolos.

“That’s when the cookie crumbels”, mandou para o microfone o jogador de rugby. Tinha de legendar a entrevista e pedi-te ajuda. Entendíamos a ideia, mas andámos às voltas para encontrar a expressão idiomática portuguesa.

Lembro-me como se fosse hoje. Estávamos naquele bar religioso quando o atravessaste direita a mim, com um sorriso triunfante: “É quando a porca torce o rabo!” Rimos, tornei-me tua groupie, fiz a legendagem.

Sempre nos imaginei velhinhas sentadas num banco de jardim, com cabelo branco, a rir, discutir política, cultura, o quotidiano, homens, claro, as aventuras, histórias e parvoíces do presente e do passado. Consegues imaginar-nos?

No dia seguinte, ao abrir o frigorifico, saiu de lá um forte aroma a laranja. Intenso, fresco. Meti o lombo no forno e fui para o portátil.

Às seis ainda não tinhas telefonado a perguntar a morada. Às sete percebi que não vinhas. Não te liguei. Não vieste.

Às nove servi-me de um pouco de lombo, batatas e cenouras que cortei previamente na bancada. Sentei-me no sofá com a mantinha e o aquecedor ligado. Não repeti. Às onze estava na cama.

No dia a seguir, ao abrir o frigorifico, o cheiro intenso a laranja enjoo-me. Coloquei-o num taparuer, tranquei-o no congelador e não pensei mais naquelas duas velhinhas.  

Dedicado à minha amiga Madalena.

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