O século XXI será chinês

A China veio para ficar. Já não são só as lojas e os restaurantes, as contrafações e as marcas genuínas dos gadgets eletrónicos, o Alibaba e o TikTok. O século XXI será chinês, não americano

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Li algures que o ex-presidente Bill Clinton terá tido consciência disso, quando, em 1995, (ainda a meia dúzia de anos da entrada formal da China na Organização Mundial de Comércio ) se apercebeu de que a árvore de natal da Casa Branca era um pinheiro de plástico, made in China.

A agenda mediática inclui agora diariamente a China. Xi Jinping tornou-se uma estrela, mais brilhante que Mao Tse Tung.

E os chineses são mais de 1.400 milhões! São muitas formigas obreiras, ávidas de consumo dos bens que modelam o conforto da vida moderna. Os custos ambientais do estilo de vida que ambicionam… ora, pensam nisso depois.

Para já, a obsessão capitalista do crescimento económico convive bem com o regime político, do partido, único, autocrático, repressivo. A China está bem com o pior dos dois sistemas. O Ocidente bem pode esticar-se, estar alerta com Taiwan. Pequim estará de arsenal em riste, para o que der e vier.

Acontecimentos recentes (leia-se a guerra entre a Rússia e a Ucrânia), têm proporcionado à China um enorme protagonismo na disputa pelo lugar cimeiro na nova ordem mundial em construção.

Sempre que vejo, nas notícias, encenações de desfiles militares e o aparatoso  arsenal, vem-me à memória uma frase que a minha prima, emigrante em França durante décadas, ouviu de uma colega chinesa e me repetiu, em tom assustado, vezes sem conta: Madame X dizia sempre, “quand la Chine se reveillera, le monde entier tremblera” (quando a China acordar, o mundo inteiro tremerá).

Há uma década, tive uma oportunidade, única na vida, de visitar um bocadinho da imensa China.

Integrada numa missão económica, a convite de empresários da Marinha Grande, passei uma semana no nordeste da China, em Changchung, capital da província de Jilin. E tive direito a uns dias em Xangai, onde decorria, à época, a grande exposição mundial, a EXPOXANGAI.

Do que vivi nesses dias, compus um postal de emoções, que retornam sempre que imagens da China aparecem no ecrã.

Onze horas depois de sair do aeroporto de Schiphol, Amesterdão, o 747 da KLM sobrevoa o céu de Xangai. É noite. Vista a uns quilómetros de altitude, aquela cidade, de mais de 15 milhões de habitantes, parece-se com qualquer outra, gigantesca, em qualquer ponto do mundo. Uma espécie de nebulosa de estrelas!

Em alguns minutos, o imponente Boeing aterra numa das pistas de Pudong, uma obra prima da engenharia, da arquitetura e da funcionalidade.

Rapidamente ultrapassadas as formalidades alfandegárias, encontramo-nos no imenso hall das chegadas. A luz branca de milhares de lâmpadas torna visível um espaço que me parece estranhamente familiar. A presença da língua inglesa nos anúncios de néon, das cadeias de lojas de marca e restaurantes de comida rápida, ajuda a construir esta estranha familiaridade. Enorme e bastante silencioso, àquela hora da noite, naquele espaço cosmopolita, como são todos os aeroportos, apenas os traços orientais dos rostos dos muitos que chegam tornam evidente que aterrei na Ásia.

É impossível a qualquer ocidental partir para uma primeira viagem à China sem uma dúzia de ideias feitas, sem mil e uma imagens sobre o que vai encontrar. E é preciso desconstruir essas ideias e apagar essas imagens, para, de olhos bem abertos, olhar, ver e recuperar o espanto. Foi o que fiz.

Integrada numa missão empresarial europeia que se deslocou à província de Jilin, na Manchúria, lá nos confins do nordeste da China, para mais um Euro-Asia Business Meeting, eu sabia que não veria a Praça de Tiananmen, nem a Cidade Proibida, nem caminharia pela Grande Muralha, que continuariam no meu imaginário, míticas e intocadas, até uma hipotética próxima viagem.

Mas a Manchúria, que alfuía à minha memória, em flashes do romance épico de Lílian Lee – “A última princesa da Manchúria”- como uma montanha sagrada, onde princesas guerreiras viviam aventuras inenarráveis, foi uma enorme surpresa. No aeroporto de Changchung, comecei a recuperar o espanto. E conservei-o em cada esquina, em cada rua da cidade e em cada espaço noturno.

O Ocidente penetrou nas profundezas da Ásia. Os edifícios, as ruas, os automóveis, os jovens, as discotecas, os centros comerciais, a presença massiva de produtos de consumo e referências simbólicas europeias e americanas transformaram a estranha familiaridade numa espécie de desencanto. Afinal eu estava na China, numa cidadezinha de 7 milhões de seres e, à exceção da comida, da escrita chinesa e das dificuldades (mais que muitas) em me fazer entender (não é verdade que muitos chineses falam inglês, e mesmo os que falam, não o falam como nós), eu começava a sentir que também aquele pedaço de mundo era a minha casa!

Onde esperava encontrar história e identidade, encontrei uma cidade moderníssima, com a linha do horizonte recortada por arranha-céus e pelo brilho metálico das gruas, ruas atulhadas não de bicicletas nem riquexós, mas de automóveis de marcas europeias, topo de gama, ouvi música latina mas não chinesa e até comi, com talheres, ovos e bacon ao pequeno almoço.

A enorme zona industrial Changchung – Jilin, em construção acelerada, constituiu uma surpresa ainda maior, não pelo planeamento (aqui sim, há uma tradição que se mantém), mas pela capacidade de concretizar tão rapidamente. O perfil urbano parecia mudar de um dia para o outro, com arranha céus a crescerem como cogumelos.

Xangai trouxe-me outros espantos. Pelo gigantismo! É difícil conceber uma metrópole de 15 milhões de seres humanos (hoje mais de 25) quando se vive numa cidade de 35 mil, a vida inteira num país com pouco mais de 10 milhões. Pelo arrojo e beleza dos edifícios que recortam o céu azul desta cidade do futuro. Pela oportunidade excecional de viajar suavemente no Maglev, à velocidade de 430 km por hora.

Mas foi também em Xangai que pude descobrir a China que se estende em superfície, na sombra dos extravagantes arranha céus onde as grandes multinacionais se instalaram, a China  dos bairros operários, maoistas, das pequenas lojas e mercados de rua, das bicicletas, dos restaurantes com candeeiros vermelhos de papel, suspensos do tecto, onde não há talheres e nos recebem com chá.

Gostei dessa China onde tudo conserva a identidade, onde é impossível comunicar sem falar a língua deles, mas onde, apesar de tudo, nos entendemos. Nessa China, senti-me uma estranha numa terra estranha, num lugar que não era a minha casa, mas que me devolveu a consciência de que o mundo só continuará grande e extraordinário enquanto conservar a diversidade.

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