A tecnologia não pode significar desumanização

Não tardará muito que todos todos nós, como clientes, nos tornemos compradores e cobradores em simultâneo, sem que haja uma alternativa de sermos atendidos por um interlocutor da nossa espécie. Analisando bem, esse dia já chegou a muitos lados, ainda que algumas actividades tenham conseguido escapar, até agora, a esse cenário. Vamos ver por quanto tempo.

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O uso da tecnologia é uma tendência cada vez mais comum nos espaços comerciais, para diminuir o peso da mão de obra. Já o seu uso nos serviços públicos deve ter em consideração alguns factores, como a iliteracia digital de uma boa parte da população. Há que proteger as pessoas, em especial as mais idosas, levadas ao engano por manifesta ignorância.

No presente, já é uma raridade encontrarmos um funcionário num posto de combustíveis, numa portagem ou até nalguns hotéis, que receba o pagamento da compra diante do cliente. Em quase todos estes sítios, debatemo-nos com as duas tarefas. Pagamos numa máquina ou através de uma aplicação informática, munidos de um código pessoal, que se encarregará de levar o dinheiro ao destinatário através de uma rede digital. Essas aplicações para já são quase todas gratuitas. No dia em que ficarmos completamente reféns delas, passarão a ser pagas.

Depois de limitar ao mínimo, as horas de atendimento ao público, os bancos vão começar a cobrar comissões por todos os serviços que prestam, até o acesso às suas poucas agências, ou pelo levantamento de dinheiro a quem continua a insistir no uso da carteira, em vez de fazer transações com o telemóvel, por exemplo.

Mas o principal obstáculo surgirá no dia em que não pudermos entrar numa repartição pública, sem fazer previamente um agendamento. E isso já está a acontecer. A pandemia foi o pretexto que faltava para mudar o paradigma no atendimento, de serviços cuja responsabilidade está a cargo do Estado. E parece que veio para ficar.

Há pessoas que andam pela rua com receios fundados, de permanecerem ilegais por tempo indeterminado, não conseguindo formalizar a sua autorização de residência por não terem um telefone local para atender, onde um receptor de chamadas lhes dá um número, depois de ouvirem uma gravação interminável, ou obterem uma aplicação web que funciona mal, para tratar de assuntos que os tornem pessoas legais e activas.

Já existem pessoas que têm que atrasar algumas das suas decisões vitais, por não conseguirem aceder livremente a um cartório, notário ou conservatória. Já começam a aparecer portas fechadas nas repartições de finanças, com um segurança na entrada, que, lista na mão, separa os habilidosos dos menos entendidos em informática. Filtra quem pode entrar e quem não pode entrar para tirar dúvidas, dum assunto pertinente e inadiável, num prédio pago com os nossos impostos, e em que as divisórias reduzem os espaços onde antes havia funcionários para atender quem não podia sair dali sem uma solução para o seu problema.

Lojas, postos de gasolina, centros de saúde, auto estradas, hotéis, bilheterias, restaurantes… e a até a Administração Pública, andam a par com aqueles que silenciosamente desumanizam e eliminam empregos. Podemos fazer todo tipo de debates para melhorarmos a rentabilidade do Estado, mas o que não pode ser legítimo, é exigirem-nos uma marcação prévia para nos deslocarmos ao balcão de uma instituição pública, para tratarmos de um assunto em que ambas as partes, Estado e cidadão, são protagonistas interessados na resolução do mesmo. Além de levantar uma barreira onde a acessibilidade deveria ser a norma. Estamos a meu ver, perante uma prática que me parece inconstitucional.

A função pública deve estar ao serviço do cidadão, e não o cidadão atrás da conveniência do sector público, apenas porque se pretende reduzir custos, sem se perceber os efeitos destrutivos que isto causa na vida das comunidades. 

Se deixarmos alastrar esta ideia, sem reparos e indignação, será o começo do fim da atenção aos cidadãos, da reivindicação dos seus direitos, e uma porta aberta para mais privatizações. E depois: menos empregos, menos garantias de emprego… menos tudo.

1 COMENTÁRIO

  1. É tal e qual como diz. Ainda vamos pagar com língua de palmo todas estas modernices. Deveria haver uma mediação eficaz para evitar esses abusos que já existem e que adivinhamos que virão a acontecer. os avanços tecnológicos são inevitáveis e bem-vindos, mas não podem ser ferramentas para nos escravizarem.

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