Explicam os teóricos da evolução cultural da Humanidade ocidental que ela se processou aos altos e baixos. Ou, dizendo doutra forma e para se usar a teoria dialéctica de Hegel (1770-1831), os acontecimentos (a tese) acabam por gerar uma reacção (a antítese), donde virá a resultar uma síntese, a qual, por sua vez, se constituirá em novo ponto de partida, num eterno movimento em espiral.
Vemos isso na moda, em que ao cabelo comprido sucede a cabeça rapada e, daí, um penteado de média dimensão, de existência fugaz. À minissaia da estilista Mary Quant, da década de 60, sucederam os vestidos até aos pés.
Também no âmbito cultural se tem progredido assim. Veja-se que, no século XVI, o Latim era a língua científica oficial; soçobrou um pouco no século XVII, para, no século XVIII, o neoclassicismo das artes ter implicado um retorno ao uso do Latim, muito por sugestão das Academias.
No que concerne à religião, recordar-se-á que a missa foi rezada em latim até não há muito tempo. A introdução da língua vernácula nas cerimónias religiosas foi, não há dúvida, uma das grandes inovações do Concílio Vaticano II (1962-1965). Por conseguinte, não é de admirar que se encontrem, aqui e além, inscrições em língua latina, por vezes em termos de jaculatórias, mormente se forem passíveis de relacionar com frases da Sagrada Escritura.
É nesse âmbito que incluímos o que está gravado no lintel duma janela do primeiro andar (junto ao telhado) do nº 3 da Rua da Ramada, em Arícera, povoação hoje integrada na União de Freguesias de Arícera e Goujoim, concelho de Armamar.
Lê-se o seguinte:
SVRGITECOPADDEVM 1706

O S e o V estão ligeiramente inclinados para diante; a perna do R, bem oblíqua e lançada para a frente; G de haste vertical, curta, com serifa no vértice; O alongado na horizontal, o que também acontece com o D, de curvatura quase ovalada; M bastante largo. A inscrição está centrada e terá havido prévias linhas de pauta para a gravação no solo, assim se explicando que se toquem os vértices do E, do V e do M.
A leitura só oferece duas dúvidas:
– Temos, aparentemente, P; será, porém, R de perna oblíqua menos perceptível, designadamente devido à dificuldade de se obter uma iluminação susceptível de o realçar.
– A outra dúvida reside no último número da data. Cremos que foi primeiramente gravado um 6, que poderá ter sido corrigido depois para 1 esguio e cursivo.
1706 ou 1701 é questão de pormenor que eventual consulta aos arquivos cadastrais poderá vir a dirimir; para o caso, todavia, como documento cultural, é de somenos.
Por conseguinte, procedendo à divisão das palavras e desdobrando a que, em nosso entender, está abreviada, o texto diz o seguinte :
SVRGITE COR(da) AD DEVM
Levantai os corações para Deus.

Preferimos corda, o plural do nome latino cor, em vez do singular cordem, por nos parecer mais lógico; contudo, também o singular se aceitaria.
Para quem viveu ainda no tempo da missa em latim, fácil será recordar, agora, a proclamação (o prefácio) a anteceder o cântico do Sanctus: sursum corda! – «corações ao alto!».
Decerto a expressão, assim nesta formulação singela, poderá ter sido inspirada em específica passagem bíblica, que não lográmos identificar. Próxima dela é, no entanto, a que vem no livro do profeta Jeremias (31, 6): «Há-de vir um dia em que os vigilantes gritarão sobre os montes de Efraim: “Levantai-vos! Subamos a Sião, ao Senhor, nosso Deus”» – «Quia erit dies in qua clamabunt custodes in monte Ephraim surgite et ascendamus in Sion ad Dominum Deum nostrum».
Não será, pois, despiciendo sugerir uma investigação sobre os reflexos da religiosidade cristã no dia-a-dia da população em geral. Reflecte esta inscrição uma convicção, o eco duma catequese que chega não apenas à população urbana, mas também às gentes do campo. Aliás, ocorre perguntar: poderá atender-se, a este propósito, à dicotomia cidade-campo? Cada achado destes, deve implicar, por outro lado, uma reflexão complementar: concretamente, o que aconteceu? Quem poderiam ter sido os autores? Houve influências directas? Trata-se, afinal, duma ocorrência isolada ou teremos – a nível local, regional ou nacional – testemunhos semelhantes?
Possa esta nota vir a suscitar maior curiosidade acerca do significado cultural que inegavelmente se desprende destes aparentemente singelos letreiros dispersos.

Acho uma maravilha descobrir-se o passado em vestígios que o “presente” aproveita, já que vivemos em sociedades de desperdício.
Uma pedra bem cortada para um lintel? E o povo, aqui representado pelo proprietário da habitação, não enjeita encaixá-la naquele vão, o que só demonstra bom senso.
Lembro que ainda tive aulas de latim (jurássica, bem sei) mas para contrariar a professora, não percebia nada e desisti. Mudei de ramo. Assim, nunca guardei da missa, onde cheguei a ser assídua apesar de filha de pais não religiosos, sequer uma palavra em latim.
Neste interessante texto que nos desafia, e sendo absolutamente ignorante na matéria, ouso perguntar: se a comunidade é, era, rural, como a casa deixa adivinhar, não seriam os de fora, da cidade, os responsáveis pela inscrição? Afinal o conhecimento era uma arma e ainda estava na mão de poucos…Continuo a adorar a epigrafia e hoje tenho pena de não perceber latim. Bem haja por este texto, José d´Encarnação.